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Levantamento de homicídios em Chapecó: a importância dos dados para pensar políticas públicas de prevenção e repressão

A divulgação sistemática e padronizada dos dados de mortes violentas intencionais deveria ser encampada pelas instituições que participam do Sistema de Justiça Criminal

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Simão Baran Júnior

Promotor de Justiça da Promotoria Regional de Segurança Pública de Chapecó/SC

Ao se pensar formas de contribuir para a redução da taxa de homicídios na Comarca de Chapecó, no âmbito da tutela difusa da segurança pública pelo Ministério Público, logo deparamos com a primeira dificuldade: a falta de dados e de estatísticas acessíveis e precisas sobre o fenômeno da violência. As estatísticas oficiais sobre as mortes violentas divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública são ainda pouco detalhadas, em geral mostrando o número de ocorrências absolutas e uma ou outra variável sobre o fato. Séries históricas e padronizadas não são comuns, assim como a possibilidade de desagregar os dados para se entender melhor o complexo fenômeno da violência. Tampouco os bancos de dados disponíveis internamente possibilitam a obtenção de um panorama dos casos.

Na ausência de institutos oficiais de estatísticas criminais, a compilação de dados e a posterior divulgação vêm ocorrendo por meio de levantamentos nacionais sobre homicídios, a exemplo do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e do Atlas da Violência, lançados anualmente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e da pesquisa Onde Mora a Impunidade, do Instituto Sou da Paz.

No mesmo passo, é o reclamo de pesquisadores por dados confiáveis e desagregáveis em diversos níveis.  Instigado por isso e premida pela necessidade de conhecer a realidade local, a Promotoria Regional de Segurança Pública de Chapecó lançou a tarefa de fazer semelhante compilação em nível local.

O objeto então proposto foi o de catalogar cada morte violenta ocorrida no município de Chapecó, retroagindo no tempo, tanto quanto fosse possível, e coletando dados estruturados sob os seguintes eixos: a) aspectos sobre os autores e as vítimas; b) o fato em si; c) questões relativas à investigação; d) sobre o processo judicial; e, por fim, e) dados sobre a punição.

Ao final, após a compilação e divulgação, o objetivo, em primeiro lugar, é aumentar a transparência sobre área sensível da atuação estatal e contribuir para a padronização dos dados a serem divulgados, modificando a cultura de opacidade das instituições que atuam no combate à criminalidade.

Posteriormente, as informações obtidas permitirão a formulação e o fomento de políticas públicas específicas de repressão e prevenção aos homicídios, além de facilitar o exercício do controle externo da atividade policial, em especial no controle da taxa de esclarecimentos de homicídios, bem como verificar o efetivo aproveitamento das provas produzidas nos Inquéritos Policiais no âmbito do processo penal. Também foi incluído no escopo do levantamento o acompanhamento dos casos pendentes de julgamento, a fim de se conhecer a real morosidade no julgamento e em quais situações ela se manifesta.

Nesse primeiro momento, verificou-se a dificuldade de se obter as informações, pois as bases de dados não estão integradas e não foram pensadas para extração de dados em maior profundidade, exigindo trabalho manual e laborioso de coleta.

Ao final, após cruzamento das informações dos diversos sistemas consultados, obteve-se a totalidade dos registros existentes sobre as mortes violentas intencionais do período de 2006 até a presente data. Portanto, a série histórica já alcança 16 anos e continuará a ser atualizada.

Atualmente, os dados obtidos estão em fase de revisão e extração de gráficos e já permitem algumas conclusões reveladoras. Talvez a maior delas seja confirmar a importância de que os dados sobre homicídios sejam devidamente compilados e divulgados, especialmente quando a extensão da coleta permite desagregá-los em diversos parâmetros.

O mais importante deles é, sem dúvida, poder catalogar e separar as mortes por tipologias, aproximando os homicídios com mesma motivação. Essa informação está ausente dos levantamentos disponíveis, certamente pela dificuldade em se acessar os autos de caso. A extração de dados por tipologias permite a formulação de políticas públicas específicas de prevenção e repressão.

Já foi identificado, por exemplo, elevado grau de casos envolvendo pessoas em situação de rua, sejam casos consumados ou tentados, o que exigirá do município o reforço do atendimento especializado dessa população-alvo.

Mas talvez o exemplo mais marcante até agora seja relacionado às mortes ocorridas em relações afetivas, que impactam de forma intensa as mulheres. Todavia, ao se ter informações sobre todas as mortes ocorridas, pôde-se agrupar todos os casos relacionados diretamente à violência decorrente de relações afetivas. O gráfico a seguir representa a compilação dessas informações:

Percebe-se que, além dos casos de feminicídio (37 casos com morte da companheira ou ex-companheira), foram encontrados diversos casos em que houve a morte do novo companheiro da mulher (11 casos) e também três mortes de terceiros que tentaram intervir na situação (em geral parentes) e duas mortes de parentes próximos (sobrinha e filha).

Foram ainda identificados nove casos de mortes de homens pelas suas companheiras. Ao se analisar o contexto dessas mortes, na grande maioria a violência contra a mulher aparece, seja no relato da denúncia, seja por registros anteriores e medidas protetivas em vigor. Então, mesmo nos casos em que a mulher mata, a violência contra ela aparece de forma nítida. Por fim, oito autores de feminicídios suicidaram-se posteriormente aos fatos.

Vemos, então, que, de 37 feminicídios, conseguimos relacionar outras 33 mortes diretamente relacionadas a esse contexto de violência afetiva, totalizando 70 mortes. Assim, quando pensamos em políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher devemos ter em mente que o tamanho real do problema é, potencialmente, o dobro do número de feminicídios registrados.

Já no âmbito do controle externo, verificou-se que a taxa de esclarecimentos de homicídios em Chapecó é superior a 75% dos casos desde 2006, chegando a 100% nos últimos anos, índices semelhantes aos de países europeus. Mesmo assim, a taxa de homicídios na cidade continua em patamares elevados para padrões mundiais, em torno de 15 mortes por 100 mil habitantes desde 2018. Duas rápidas conclusões: a capacidade da polícia local em investigar crimes violentos contrasta com a realidade divulgada por pesquisas como Onde mora a impunidade, na qual a regra é a baixa taxa de esclarecimentos. Em razão disso, a Promotoria poderá voltar suas atenções a outros problemas. A segunda conclusão é que, a despeito do elevado patamar de sucesso nas investigações, os números de homicídios permanecem altos, indicando a importância, mas também a insuficiência de medidas puramente repressivas no combate à criminalidade violenta. Articular a prevenção será o foco da Promotoria na sequência.

Concluindo, a divulgação sistemática e padronizada dos dados de mortes intencionais violentas (incluindo-se as mortes decorrentes de intervenção policial) mostra-se com grande potencial para fazer frente a esse problema e deveria ser encampada pelas instituições que participam do Sistema de Justiça Criminal.

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