Justiça em Rede: a operacionalização das políticas de proteção à mulher em situação de violência doméstica diante de velhos desafios
Quando uma mulher resolve pedir ajuda, deve encontrar instituições receptivas e solícitas para restauração de seus direitos violados. E, infelizmente, uma rede com capacidade para fazê-lo não se constrói do dia para a noite
Juliana Lemes da Cruz
Doutoranda em Política Social (UFF), Cabo na PMMG e Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Emerson Chaves Motta
Juiz de direito da 2ª Vara Criminal, Comarca de Teófilo Otoni (TJMG)
A Rede de Proteção às mulheres contra a violência de gênero não é a mesma em todos os lugares. Assim como assinalado no relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI, instituído com participação de deputadas e senadoras e publicado no ano de 2013, concentra-se nos grandes centros urbanos a estrutura especializada para atendimento e acolhimento da mulher em situação de violência doméstica e familiar. Uma década depois, esse dado permanece atual.
No caso de Minas Gerais, por exemplo, as comarcas mais distantes das regiões centrais, especialmente aquelas que abrangem municípios com os menores Índices de Desenvolvimento Humano do estado, sofrem com a ausência da Defensoria Pública. E não apenas isso, há complicadores associados à falta de estrutura que condicionam a prestação de serviço às demandantes. O que inclui a difícil integração operacional interinstitucional, o que prejudica alcançar o objetivo de erradicar a violência de gênero. Outro problema é a contaminação de membros e membras das instituições públicas pelo pensamento patriarcal, o que faz com que apliquem a Lei Maria da Penha de forma enviesada, com consequente redução de sua eficácia. Um exemplo disso é a revitimização da mulher e a inserção de prazos exíguos para vigência das medidas protetivas de urgência.
De forma mais intensa, nos últimos anos, o estado brasileiro vem ouvindo os clamores sociais, realizando estudos sobre o problema, corrigindo e aumentando a efetividade da Lei Maria da Penha. Por outro lado, embora existam várias portas de acesso à rede de proteção, a violência doméstica e familiar contra a mulher ainda é bastante subnotificada. Muitas mulheres levam anos, até mesmo décadas, para denunciar seu agressor e, com isso, encontrar apoio para se desvencilharem do ciclo violento. Quando uma mulher resolve pedir ajuda, deve encontrar instituições receptivas e solícitas para restauração de seus direitos violados. E, infelizmente, uma rede com capacidade para fazê-lo não se constrói do dia para a noite.
Além de equipamentos, necessário que profissionais sejam devidamente treinados e qualificados para o atendimento com perspectiva do gênero de recursos para fazer frente aos condicionantes do fenômeno, como a dependência econômica e afetiva, viabilizando a resposta penal para o agressor pertinaz, inclusive sua prisão preventiva.
Atentando a essa realidade, foi instituído em 2021, entre o Tribunal de Justiça e outras instituições do Estado de Minas, o Programa Justiça em Rede contra a Violência Doméstica e, por meio dele, construiu-se a Carta de Intenções nº 01, formulada no 1º Encontro com membros da Rede de Proteção, ocorrido em março de 2023. O documento apresenta um breve diagnóstico, percepções dos sujeitos envolvidos e recomendações. Dentre as quais, destaca-se: a) aos magistrados e magistradas para que utilizem do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, visto sua recente obrigatoriedade e conforme determinado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ.; b) aos profissionais (policiais ou não), operadores do sistema REDS/boletim de ocorrência, que atentem ao correto preenchimento do Formulário Nacional de Avaliação de Risco, vinculado à plataforma; c) à rede de enfrentamento, em uma ação conjunta, para que providencie a atenção aos homens, por meio dos grupos reflexivos; por fim, d) ao Ministério Público, recomendou-se “maior fomento, acompanhamento e fiscalização das políticas públicas com recorte de gênero”.
Certo é que existem desafios enormes, como proteger as mulheres residentes em áreas dominadas pelo crime organizado ou distantes dos locais de atendimento, como pontos da zona rural sem boas estradas e sinal de telefone ou internet. Conforme levantamento exploratório* dos boletins de ocorrência de fatos relacionados à violência doméstica contra a mulher registrados em alguns municípios do Vale do Mucuri, região nordeste de Minas Gerais, entre 2016 e 2020, verificou-se que, embora bastante populosas, regiões referenciadas como zonas de criminalidade, dominadas, especialmente pelo tráfico de drogas ilícitas, não são endereçadas pelas mulheres que buscam o registro de um boletim de ocorrência. A resolução do problema admite outro tipo de mediação, a não oficial.
A violência de gênero, apesar de dizer respeito às provocadas contra qualquer gênero, convencionou-se associar o termo à violência sofrida pelo gênero feminino, majoritariamente alvo do problema. Funda-se, nesse sentido, na compreensão generalizada e naturalizada de que a mulher, sendo inferior ao homem – quem domina –, deve se contentar com papéis menores ou secundários na família, na sociedade, na economia, nas profissões, na religião. Como por destino, ser subordinada e coagida, sofrer violência e aguentar calada.
O machismo estrutural tende a estabelecer influência sobre todas as esferas da sociedade, sobre homens e também mulheres. Manifesta-se, no geral, por meio de estereótipos: concepções e comportamentos que não são percebidos como aquilo que realmente são, uma forma de preconceito com resultados muitas vezes cruéis. A própria mulher, não raro, colabora para a difusão e perpetuação desse estado de coisas, pois aprendeu que deve ser assim, reproduzindo, mesmo que inconscientemente, pensamentos e condutas machistas. Isso fica claro, por exemplo, quando ela aceita, ainda que desconfortável, o “pomposo” título de rainha do lar, por acreditar ser este o seu lugar por “natureza”. Nessa dinâmica, o movimento masculinista, consciente e perverso, tem ganhado espaço no debate público brasileiro, especialmente nos últimos meses. Objetivamente, militam em prol da supremacia masculina, travando uma verdadeira guerra contra a igualdade de gênero. Vale lembrar que tal movimento não estabelece qualquer simetria com o movimento feminista, embora seja esta a compreensão rasa sobre o assunto.
Essa realidade cultural e social deve dividir o centro da arena com estruturas que prometem nocauteá-la. Pelo menos, é o esperado diante da promulgação de diplomas internacionais e legislação interna, os quais afirmam a igualdade de homens e mulheres perante a lei. O que significa que eles não podem ser tratados melhor do que elas. Enquanto seres humanos, todos, todas e todes são credores de igual respeito.
Conforme evidenciado na pesquisa Visível e Invisível – 2023, publicada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a “[…] máxima ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’ parece, felizmente, ter perdido força no Brasil, e cada vez mais, a população tem mostrado sua intolerância com a violência doméstica”.
Destacam-se nesse cenário a atuação em rede das instituições públicas, a prestação de assistência social, psicológica e jurídica às vítimas, e a maximização do direito penal. Em que pese o diálogo entre os atores que a compõem demande alinhamento e proximidade metodológica.
*Informação parcial relacionada à pesquisa doutoral da autora.
Carta de Intenções 01 – https://www.tjmg.jus.br/comsiv/encontro-justica-em-rede-contra-a-violencia-domestica-e-familiar-a-mulher-sob-a-protecao-do-sistema-de-justica.htm#.ZFkWGs7MLIU