Insuficiência de políticas se reflete no crescimento da violência letal contra mulheres
O crescimento da violência letal contra mulheres no Brasil decorre da histórica e estrutural desigualdade de gênero em nossa sociedade, mas também da pouca prioridade dada pelo Poder Público, em diferentes instâncias, às políticas de acolhimento a mulheres em situação de violência
Samira Bueno
Diretora-Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Doutora em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas
Isabela Sobral
Supervisora do Núcleo de Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mestre em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas
Na última quarta-feira (8), ocasião do Dia Internacional da Mulher, o Monitor da Violência – iniciativa conjunta entre o G1, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP – divulgou os números de feminicídios ocorridos no país em 2022. De acordo com o levantamento, em 2022 ao menos 1.410 mulheres foram assassinadas em razão de seu gênero. Este número representa um aumento de 5,5% em relação a 2021, quando foram registrados 1.337 casos. É também o número mais elevado de toda a série histórica, iniciada em 2015, ano em que foi sancionada a lei que criou o crime de feminicídio. Cresceu também o número de mulheres vítimas de homicídio, que passou de 3.831 em 2021 para 3.930 em 2022 – uma variação de 2,6%.
O aumento do número de vítimas de feminicídio e de homicídios femininos vem na contramão dos dados gerais de assassinatos do país. Como mostrou também o Monitor da Violência, o Brasil teve pequeno recuo de 1,1% na quantidade de crimes violentos letais intencionais – soma de homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte – no último ano.
O primeiro ponto a ser considerado quando falamos de feminicídios é que estamos falando de mortes que poderiam ter sido evitadas. As informações mais recentes, publicadas no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mostram que em 8 em cada 10 casos de feminicídios o autor é o parceiro ou ex-parceiro íntimo da vítima. Constituem, portanto, casos que decorrem de violência doméstica, e que poderiam ter sido evitados se os instrumentos previstos na Lei Maria da Penha e em outras legislações existentes no país fossem devidamente implementados no cotidiano. Não se trata, portanto, de crimes passionais, que ocorrem do dia para a noite, mas, pelo contrário, são decorrentes de uma escalada de diferentes formas de violência, que geralmente começam com ofensas e humilhações, ciúmes excessivos, violência patrimonial e evoluem para a violência física.
O desafio não parece residir, portanto, na ausência de leis penais ou outras proposições legislativas sobre o assunto, que avançaram consideravelmente desde 2006 quando da aprovação da Lei Maria da Penha. As medidas protetivas de urgência, por exemplo, constituem importante mecanismo de proteção à mulher em situação de violência. No Estado de São Paulo, o Raio-X do Feminicídio produzido pelo Ministério Público mostrou que apenas 3% do total de vítimas tinham uma medida protetiva de urgência e 4% das vítimas de feminicídio consumado tinham registrado um boletim de ocorrência contra o autor em decorrência de violência doméstica. No Distrito Federal pesquisa similar foi conduzida e indicou que 72% das vítimas de feminicídio não tinham denunciado os companheiros por violência física ou psicológica. Ou seja, as informações disponíveis indicam que a maioria das vítimas sequer buscou o Estado.
Esses dados são coerentes com a pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, divulgada pelo FBSP no início do mês, que mostra que a maioria absoluta das mulheres vítimas de violência no ano passado não buscaram nenhum equipamento estatal. Dentre as entrevistadas, 45% afirmaram não ter feito nada após a violência sofrida, o que significou o silêncio; 17,3% procuraram ajuda de algum familiar, 15,6% buscaram ajuda de amigos e 3% da Igreja. Dentre aquelas que procuraram o Estado, foram as Delegacias da Mulher os equipamentos mais buscados, com 14%, seguidos das delegacias comuns, com 8,5%, e do número de emergência da Polícia Militar, o 190, com 4,8%. A pesquisa também mostrou que houve um aumento de todas as formas de violência contra a mulher – física, sexual ou psicológica – em 2022.
Soma-se ao cenário aqui apresentado o desfinanciamento das políticas de proteção à mulher nos últimos anos, refletido no orçamento do então Ministério da Família e Direitos Humanos, que empenhou os menores valores financeiros em uma década, e a precarização de muitos serviços de saúde e assistência social em razão da pandemia de covid-19, limitando ainda mais o acesso de mulheres em situação de violência à rede de acolhimento. O crescimento da violência letal contra mulheres no Brasil decorre da histórica e estrutural desigualdade de gênero em nossa sociedade, mas também da pouca prioridade dada pelo Poder Público, em diferentes instâncias, às políticas de acolhimento a mulheres em situação de violência.