Incêndios florestais: o inferno dantesco da Perícia Oficial
Após a temporada de incêndios deste ano, espera-se que o governo amplie as medidas de prevenção, controle e os recursos voltados à identificação e punição de eventuais autores de crimes ambientais e patrimoniais relacionados aos incêndios
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Em nossa coluna já exploramos praticamente todos os tipos de exames periciais e dentre eles a perícia de incêndio, considerada uma das mais complexas e difíceis, exigindo dos peritos examinadores muito conhecimento e abnegação. Dentro dessa modalidade há também especificidades: incêndios em edificações, incêndios veiculares e incêndios florestais, estes últimos, assunto do nosso tema nesta semana.
Os incêndios florestais foram assunto recorrente de matérias jornalísticas nesses meses de agosto e setembro em nosso país. As condições climáticas desfavoráveis, impulsionadas pelo aquecimento global, com uma estação seca severa, permitiram a deflagração de grande número de incêndios espalhados por nosso território. Cidades de todas as regiões viram sua qualidade de ar despencar a níveis jamais imaginados. Tráfego aéreo afetado, escolas fechadas, hospitais com alto índice de atendimentos de doenças respiratórias, restrições a atividades físicas, constituem exemplos dos transtornos enfrentados nessa estação.
Em meio à onda de incêndios, os governos federal e estadual se depararam com um duplo desafio: combater os incêndios e buscar identificar aqueles que pudessem ser caracterizados como criminosos e não apenas acidentais. Aqui se estabelece a correlação desse desafio com o trabalho da perícia.
Da mesma forma com que a doutrina criminalística trata os demais exames periciais, os objetivos principais nesse tipo de trabalho são: a definição de crime, a identificação de autoria e a reconstituição da dinâmica do fato. A repercussão jurídica da definição do crime e de sua dinâmica possibilitam respaldar a materialidade em um inquérito policial, enquanto a identificação de autoria pode resultar na responsabilização de criminosos identificados de modo seguro.
Dentre esses dois polos: materialidade e autoria, o primeiro nos parece de mais fácil alcance e realmente assim se demonstra, embora não menos trabalhoso. Incêndios florestais são geralmente eventos que atingem áreas de grandes proporções, milhares de quilômetros em áreas com topografias de todos os tipos: planícies, planaltos e serras. Afetam todos os tipos de biomas, desde florestas, campos, cerrados até matas ciliares. Muitas vezes os peritos sequer conseguem atingir a área incendiada.
O desafio da identificação de autoria é ainda mais complexo. Nas investigações, as autoridades contam também com a prova testemunhal, que muitas vezes se converte em indício. Já a prova técnica, com a identificação de autoria, é rara e eventual.
Vamos aos dados:
Segundo informações na mídia, até aqui, pelo menos 221 pessoas foram presas ou detidas por suspeita de envolvimento em incêndios criminosos. Os números foram obtidos das polícias ligadas aos governos estaduais em dez unidades da federação. Há investigações em curso também na Polícia Federal.
Os dados mais recentes do Monitor do Fogo, divulgados pelo MapBiomas, mostram que, em 2024, a área queimada no país atingiu 11,39 milhões de hectares, um aumento de 116% em relação a 2023. Apenas o mês de agosto representou 49% da área queimada no Brasil, e a expectativa é de que em setembro seja ainda pior. O lavantamento aponta ainda que os estados mais atingidos foram Mato Grosso (17.169 km²), Pará (9.194 km²) e Mato Grosso do Sul (6.282 km²). No Mato Grosso ocorreram 20 prisões; no Pará, quatro. Mato Grosso do Sul não divulgou essa informação.
O Brasil teve ao menos 10,1 milhões de pessoas diretamente afetadas pelos efeitos dos incêndios florestais desde o início de agosto, conforme estimativa da CNM (Confederação Nacional dos Municípios).
No que compete à perícia em locais de incêndios florestais, o uso da tecnologia constitui-se em um importante aliado, com o emprego de imagens de satélite cada vez mais abrangentes, com alta definição e de diferentes modalidades (pancromática, multiespectral, hiperespectral e radar). Drones, helicópteros e aviões também podem ser empregados nas atividade de monitoramento, combate e aquisição de dados para exames periciais.
Após a temporada de incêndios deste ano, espera-se que o governo amplie as medidas de prevenção, controle e os recursos voltados à identificação e punição de eventuais autores de crimes ambientais e patrimoniais relacionados aos incêndios. Enquanto isso, seguimos experimentando in loco, e em parte, o Inferno descrito por Dante em A Divina Comédia.