Atlas da Violência 10/07/2024

Homicídios por arma de fogo e falha na fiscalização no Brasil

A difusão de armas de fogo na sociedade gera efeitos perversos, como aumento de crimes e facilidades para o crime organizado

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Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Em 2022, o país registrou um total de 33.580 homicídios por armas de fogo, número inferior aos dois anos anteriores, que foram de 35.070 (em 2021) e 35.828 (em 2020). Entretanto, trata-se de número maior do que aquele registrado em 2019 (32.091).

Em 2022, o Brasil registrou uma taxa de 15,7 assassinatos por armas de fogo para cada 100 mil habitantes. Nove UFs apresentaram variação positiva em relação a 2021, destacando-se Mato Grosso (25,8%), Acre (17,3%), Rondônia (12,4%) e Paraná (12,0%). É relevante notar que Paraná e Acre têm apresentado variações positivas desde 2019. Por outro lado, as maiores variações negativas foram observadas no Rio de Janeiro (-23,9%), Amapá (-22,7%), Ceará (-16,8%) e Santa Catarina (-14,5%). Este último estado tem apresentado variações negativas desde 2018.

Além disso, analisando a proporção de homicídios cometidos por armas de fogo em relação ao total de homicídios, verificamos que, em 2022, 72,4% do total de homicídios no país foram praticados com o uso de armas de fogo. Embora tenha havido uma leve redução em relação a 2017 (-3,2%), quatorze UFs registraram variação positiva nos percentuais de assassinatos cometidos com o uso de armas de fogo, com destaque para Amapá (39,0%), Piauí (27,0%), Roraima (22,4%) e Amazonas (15,1%). Com exceção de Roraima, todos eles têm apresentado variações positivas nos anos anteriores.

Como já destacado na edição 2019 do Atlas da Violência, há um consenso na literatura científica de que o aumento da prevalência de armas de fogo está associado ao aumento das taxas de homicídios e suicídios.

Em consonância com esses resultados, observa-se que, entre os quatorze estados que apresentaram variações positivas na proporção de homicídios cometidos com o uso de armas de fogo, nove também registraram um aumento na taxa de homicídios: Acre, Alagoas, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraná, Piauí, Rio Grande do Sul e Rondônia. Para quantificar esse fenômeno, examinamos a correlação linear entre a variação quinquenal das taxas de homicídio e a variação quinquenal da proporção de homicídios cometidos com o uso de armas de fogo no período de 2012 a 2022. Em 2022, essa correlação mostrou-se alta, atingindo 0,60, e todos os anos apresentaram uma correlação positiva, com uma mediana de 0,74.

Fiscalização falha

O Tribunal de Contas da União (TCU) realizou uma auditoria entre 2019 e 2022 nos sistemas de controle de armas e munições sob responsabilidade do Exército Brasileiro (EB), da Polícia Federal (PF) e da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

A lei nº 10.826/2003 atribui à Polícia Federal e ao Exército Brasileiro as responsabilidades da política pública de controle de armas. Cabe à PF conceder posse e porte de arma de fogo, condicionados à comprovação de efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à integridade física. As autorizações concedidas pelo EB envolvem pessoas físicas interessadas em realizar atividades específicas: colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CAC).

O Sistema Nacional de Armas (Sinarm) é o sistema utilizado pela Polícia Federal para desempenhar as competências de registro e rastreabilidade de armas de fogo, e as ações de fiscalização dos administrados.

O Exército Brasileiro utiliza o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), no qual são registradas as pessoas físicas que exercem atividades de CAC, bem como suas armas. Adicionalmente, conta com a assistência do Sistema de Controle da Venda de Munições (Sicovem) para monitorar as transações de munições.

Por sua vez, a lei nº 13.675, de 11/6/2018 instituiu o Sinesp, sistema informatizado gerido pela Senasp, com o dever de integrar dados e informações sobre rastreabilidade de armas de fogo desses dois sistemas.

Os auditores do TCU avaliaram a idoneidade das pessoas físicas que tiveram as requisições aprovadas e foram cadastradas no Sigma e no Sicovem. A idoneidade dessas pessoas foi verificada com base na existência de inquérito policial ou processo criminal contra elas. Para obter essas informações, a equipe de auditoria solicitou ao CNJ e à Senasp uma pesquisa no Sinesp PPE (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas – Módulo Procedimentos Policiais Eletrônicos), no BNMP (Banco Nacional de Mandados de Prisão) e no SEEU (Sistema Eletrônico de Execução Unificado) – sendo o primeiro sob a gestão da Senasp e os dois últimos, do CNJ.

Em relação ao Sigma, foram identificados 70.646 boletins de ocorrência, 9.387 mandados de prisão e 19.479 processos de execução penal relativos a pessoas físicas registradas nessa base.

Em relação ao Sicovem, constatou-se que este sistema não é gerido pelo Exército Brasileiro, mas sim pela Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), um agente econômico privado relevante no mercado fiscalizado. Essa situação pode gerar potenciais conflitos de interesse, uma vez que não há um instrumento jurídico formalizado entre as partes para regular essa relação. Além disso, observou-se a baixa qualidade e confiabilidade dos registros existentes no sistema: os registros feitos antes de 02/11/2018 não contêm CPF, certificado de registro (CR) ou certificado de registro de arma de fogo (CRAF) do adquirente; entre os registros posteriores, 14,7% contêm CRAF inexistentes no Sigma.

Foi constatado também que o Exército não verifica a habitualidade dos atiradores desportivos, uma característica definidora, durante a renovação do CR. Da mesma forma, não verifica a veracidade das informações de habitualidade durante as fiscalizações das entidades de tiro. Apenas 10,4% das pessoas físicas que tiveram o CR de caçador concedido ou revalidado junto ao Exército no período de 2019 a 2022 obtiveram autorização do Ibama no mesmo período para a efetiva realização da atividade, indicando possível desvio de finalidade.

Os auditores também alertaram que a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército foi incapaz de fornecer dados confiáveis relacionados à quantidade de vistorias e fiscalizações de CACs e de entidades de tiro.

Em relação ao Sinarm, sistema da Polícia Federal, a auditoria do TCU analisou o cadastro de armas de fogo apreendidas. Concluiu-se que, devido à falta de cadastramento no Sinarm e no Sinesp das informações sobre as armas de fogo apreendidas pelas polícias civis dos estados e do Distrito Federal, os dados armazenados e integrados pelos sistemas de informações geridos pela PF e Senasp não são confiáveis.

A equipe de auditoria analisou as apreensões realizadas apenas pela PF entre os anos de 2013 e 2021, concluindo que até 76% das armas de fogo apreendidas podem ter sido adquiridas legalmente e, posteriormente, desviadas para o mercado ilegal.

Os auditores finalizaram o relatório com a seguinte determinação: “recomendar ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, à Secretaria Nacional de Segurança Pública, ao Departamento de Polícia Federal e ao Comando do Exército, com fundamento no art. 250, inciso III, do Regimento Interno/TCU, que, com a necessária interlocução com o Colégio Nacional dos Secretários de Segurança Pública (Consesp), avaliem a pertinência e a oportunidade de criação de órgão único para centralizar as ações da política pública de controle de armas no País, especificamente sobre a gestão de sistemas de informação, ou, alternativamente, de unificação de competências em apenas um órgão ou unidade do governo federal, já existente”.

Atendendo a essa recomendação, o Governo Federal emitiu o decreto nº 11.615, em junho de 2023, que delineou a transferência gradual do controle e da supervisão sobre o armamento civil do Exército para a Polícia Federal. Nas palavras de Flávio Dino, Ministro da Justiça à época, chegava a hora de “colocar fim a esse ‘liberou geral’ [das armas de fogo] irresponsável que acabou aumentando o poder das quadrilhas no Brasil”.

No entanto, o que se viu desde então foi o não avanço de uma política responsável para restringir a posse e o porte de armas de fogo no Brasil. Pior, recentemente a Câmara dos Deputados aprovou em plenário, por votação simbólica, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 206/2024, que retira várias proibições do decreto presidencial. Entre outros pontos, o PDL retira do decreto a proibição de colecionar armas de fogo automáticas de qualquer calibre ou longas semiautomáticas de calibre de uso restrito cujo primeiro lote de fabricação tenha menos de 70 anos. Fica também de fora a proibição de armas de mesmo tipo, marca, modelo e calibre em uso nas Forças Armadas. O decreto legislativo acaba ainda com a proibição de funcionamento de clubes de tiro a menos de 1 km de escolas.

Como já reiteramos diversas vezes nas várias edições do Atlas da Violência, a flexibilização a favor da difusão de armas de fogo na sociedade gera efeitos perversos, como aumento de crimes e facilidades para o crime organizado. Com o supramencionado PDL, a Câmara dos Deputados deu uma enorme contribuição para o crime organizado e para a insegurança pública da nação. Piorará ainda mais o que já era temerário e falho.

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