Guerreiros adoecidos: a saúde mental dos policiais sob alerta
A necessidade de validação da própria masculinidade por meio da não busca à assistência disponível e não demonstração pública de 'fraqueza' são alguns dos elementos capazes de afetar sobremaneira a saúde mental dos policiais
Juliana Lemes
Doutora em Política Social pela UFF, Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais
Juliana Martins
Psicóloga, Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP e Coordenadora Institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A manhã de 14 de janeiro de 2024 poderia ter sido mais uma de plantão rotineiro para um sargento e dois soldados da Polícia Militar do Distrito Federal, não fosse a tragédia que se seguiu ao atendimento de uma ocorrência simples e da ida a uma sorveteria antes de um próximo atendimento policial. Informações dão conta de que o sargento e um dos soldados saíram da viatura para comprar picolés. Ao retornar, o sargento efetuou um disparo de arma de fogo na cabeça do soldado que conduzia a viatura e, em seguida, tirou sua própria vida. O terceiro componente buscou ajuda, mas o óbito de ambos ocorreu.
Como num looping sem fim, estamos novamente diante da repercussão de um homicídio cometido por um policial militar em serviço, seguido de seu suicídio. Só aqui no Fonte Segura temos mais de dez artigos repercutindo situações similares, refletindo sobre a saúde mental dos diferentes profissionais da segurança pública, analisando os dados disponíveis ou apresentando possibilidades de enfrentamento e superação de situações como essa. Embora saibamos que, para familiares e sobreviventes, a complexidade que envolve continuar administrando a vida diante de fatos dessa natureza constitui algo de grandeza imensurável. Estamos certos de que falar desse caso nos faz reviver todos os outros.
O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou que, em 2021, 86 policiais militares e 23 policiais civis cometeram suicídio, totalizando 109 profissionais. Em 2022, foram 98 casos, sendo 85 policiais militares e 13 civis. Provavelmente esses números são ainda mais elevados, uma vez que nem sempre são disponibilizados ou contabilizados. A falta de dados e informações precisas invisibiliza a grave situação de adoecimento de policiais no nosso país e não permite que tenhamos a real dimensão do que precisa ser enfrentado e, por isso, de quais caminhos para prevenção e intervenção devem ser percorridos. Assim como já sinalizamos em outras oportunidades, não falarmos sobre isso e não divulgarmos esses dados não protege os policiais; pelo contrário, os torna ainda mais vulneráveis.
Quando se trata de saúde mental, as vulnerabilidades são tensionadas, também, pelo recorte de gênero. Nesse caso, os homens são os que figuram como as principais vítimas letais. Levantamento do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES, 2023) sobre eventos entre os anos de 2018 e 2022 apontou que são os policiais militares, praças, e do sexo masculino os protagonistas de suicídio. Sabemos, no entanto, que o efetivo masculino é bem maior do que o feminino nessas corporações. O IPPES fez um levantamento também dos casos de homicídio seguido de suicídio e, em 2022, foram 17 casos de homicídios seguidos de suicídio, com 29 vítimas de homicídio e 17 de suicídio. Entre as 29 vítimas de homicídio, 15 eram do sexo feminino e 21 possuíam vínculo afetivo anterior ou atual com a vítima do suicídio.
As armas de fogo respondem por 46% dos suicídios em 2022, e por alarmantes 94% dos homicídios seguidos de suicídio. Casos em que o Ippes registrou aumento expressivo se comparados os anos de 2021 e 2022, nos quais ocorreram 13 e 29 casos, respectivamente.
Como apresentado no estudo, são os policiais militares e civis de ponta (praças e agentes), os que têm provocado autoextermínio/suicídio. Nessa direção, é inequívoco associar a natureza do trabalho policial das citadas categorias com o adoecimento mental que os conduz ao extremo de dar fim às próprias vidas.
Dois aspectos são válidos para que possamos pensar nessa dinâmica que afeta tanto e mais os homens. O primeiro diz respeito aos papéis de gênero socialmente construídos que delimitam posturas aceitáveis para o masculino e para o feminino. Nesse esforço, desde a primeira infância, meninas e meninos são submetidos a experiências distintas de sociabilidade. Meninas, autorizadas a manifestar suas emoções e meninos desautorizados a fazê-lo abertamente. Dentre inúmeras outras características formatadas a partir da referência de gênero, constitui-se o segundo aspecto. Como uma reprodução do primeiro, ganha eco a partir dos contextos formativos dos profissionais de segurança pública, historicamente constituídos por homens e para homens, consequentemente, atribuindo à figura masculina o rótulo de policial “herói” ou “superior ao tempo”.
Sob esse segundo aspecto, os cursos de formação enfatizam o policial “guerreiro” em detrimento do policial “guardião”. Nessa dinâmica, na prática, são os guerreiros que têm mais valor naquela estrutura. São eles que vão para o front, como uma questão de honra, além do fato de muitas unidades de polícia não reunirem mulheres em equipes de forças especializadas. Em certa medida, não porque elas não queiram, mas porque ainda não conseguiram conquistar tais espaços. Determinados lugares dentro das estruturas policiais são compostos de profissionais masculinos pois são caracterizados como zonas de “elite” das corporações, interna e socialmente, compreendidos como espaços para exercício do fazer policial mais valorizado – de natureza operacional.
Diante desse cenário, o que vemos atualmente é o colapso de um perfil de policial forjado para lidar com um provável inimigo, mas comumente imerso em ambientes nos quais precisa mediar conflitos cotidianos, em nível de comunidade. Trata-se de movimento que exige do policial alterações repentinas de condicionamento mental e postura, o que gera um estresse que nem o próprio consegue descrever.
Questões que estão intimamente associadas a outros aspectos, dentre as quais, a dificuldade de compreensão de que a irritabilidade, a mudança de humor, o esquecimento e outros sintomas cada vez mais frequentes, que não se apresentavam anteriormente, tenham relação com o seu nível de estresse; a negação de que precisa de ajuda para lidar com o que não tem conseguido administrar; a resistência de se submeter ao acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico; o negligenciamento de sinais claros de que algo não vai bem no campo íntimo; a necessidade de validação da própria masculinidade por meio da não busca à assistência disponível e não demonstração pública de “fraqueza”; dentre tantos outros elementos capazes de afetar sobremaneira a saúde mental dos policiais.
Para que a gente possa sair dessa repetição infinita de casos trágicos, é fundamental que a saúde mental dos profissionais de segurança pública seja prioridade nas organizações policiais e bandeira de gestores, comandantes e oficiais. Fortalecer a saúde mental através de ações de cuidado e prevenção, junto a uma melhora no ambiente organizacional é tão ou mais importante do que o fortalecimento e condicionamento físicos ou treinamento operacional para que o policial possa desempenhar bem sua função junto à nossa sociedade.