Iris Rosa
Pesquisadora do Instituto Fogo Cruzado
Ao longo de 2 meses, a equipe do Instituto Fogo Cruzado trabalhou no desenvolvimento de um instrumento para denunciar o impacto direto e brutal da violência armada nas vidas de crianças e adolescentes da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Essa ferramenta foi lançada na última semana. É o mapa interativo “Futuro Exterminado”. Nele é possível localizar cada uma das crianças e adolescentes baleadas e registradas na base de dados do Fogo Cruzado no Grande Rio nos últimos 7 anos. Constatamos que não se trata de alguns casos isolados, mas sim uma soma estarrecedora de mais de 600 vidas atingidas.
Na semana do lançamento do mapa, Thiago Flausino foi morto na Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro. Quando já era impactante um adolescente de 13 anos ser enterrado no período de divulgação do projeto, no dia 12 de agosto, Wendell, de 17 anos, e Eloah, de 5 anos, foram mortos na Ilha do Governador, na zona norte da capital.
Até a data que escrevo, o Instituto Fogo Cruzado mapeou 609 crianças e adolescentes baleadas no Grande Rio. Thiago, Wendell e Eloah se juntam a Ágatha Felix, as primas Emilly e Rebecca, ao João Pedro, ao Kauã e a tantos outros dos quais ouvimos falar e que não podemos esquecer. Isto porque, quando olhamos para esses nomes, olhamos também para dados que precisam ser considerados para a construção de políticas públicas voltadas para a segurança da população.
A plataforma interativa “Futuro Exterminado” informa, além das vítimas e do local em que foram atingidas, a motivação do tiroteio e se a vítima resistiu ou não. Apresento agora alguns dos principais resultados analíticos. Os dados apontam que, em média, a cada quatro dias uma criança ou adolescente é atingido por um projétil de arma de fogo no Grande Rio. Do total de baleados, 273 foram mortos e 336 ficaram feridos. Em relação à faixa etária, os adolescentes representam a maioria das vítimas. E quando olhamos apenas para as crianças, das 135 baleadas, 38 morreram e 97 ficaram feridas. O levantamento considera as faixas etárias de 0 a 11 anos para crianças e de 12 a 17 anos para adolescentes, conforme o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
As ações e operações policiais foram o principal motivo para vitimar crianças e adolescentes nos últimos sete anos. Entre as 609 vítimas, 292 foram atingidas nestas circunstâncias, um percentual de 48%, resultando na morte de 118 e deixando outras 174 feridas. São ações com a participação de agentes do Estado em serviço, que expõe a população a um altíssimo risco de vida. Eloah foi atingida enquanto pulava na cama, dentro de casa. Maria Eduarda e outros 11 jovens foram baleados em unidades de ensino, outros 7 foram atingidos quando estavam no trajeto casa-escola.
Às vítimas diretas da violência armada somam-se outros efeitos menos visíveis, mas igualmente nocivos para o desenvolvimento da nossa sociedade. Os dados do Fogo Cruzado permitem constatar que ao menos 14,3% das escolas e creches da região metropolitana registraram tiroteios em um raio de 300m em dia e horário letivo em 2022, e esta já era uma marca persistente antes da pandemia. Com base nesses mesmos dados, o Cesec mensurou o impacto da violência armada na aprendizagem de português e matemática, chegando à conclusão que em escolas com o entorno violento (seis operações policiais ou mais) os estudantes do 5º ano do ensino fundamental tiveram uma redução média de 7,2 pontos para língua portuguesa e 9,2 para matemática na escala do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica). Essa redução é estatisticamente significativa e pedagogicamente relevante.
Estes são apenas alguns dos resultados de um modelo de política ineficiente, que, com o passar das décadas, vem sendo sofisticado, intensificado e chancelado. É um modelo que atinge majoritariamente famílias periféricas e negras, tornando a infância e a juventude algo frágil e vulnerável. Uma vez postos e denunciados, esses dados serão ignorados pelos gestores públicos? Qual será o caminho? Quem será responsabilizado? O governo do Estado? Os comandantes das policiais? Os policiais na ponta? Quem vai se mobilizar?
É papel do Estado responder a estes desafios e fazer valer a constituição, que determina a garantia não só da vida, mas também do acesso à educação – em outras palavras, que determina um futuro digno. Diante da realidade expressa em números, fica clara a falência do estado em múltiplas frentes. Falham as polícias, com protocolos que privilegiam o confronto armado e colocam a população na linha de tiro. Falham os órgãos de controle interno e externo das polícias, como corregedorias e Ministério Público, que ao não promoverem responsabilização dos agentes de segurança, tornam possível a perpetuação de mortes no tempo. Falham órgãos executivos das esferas federal, estadual e municipal, incapazes de propor políticas de redução de danos, que combatam as desigualdades sociais no Brasil.
Enquanto isso, é função da sociedade civil cobrar que essas estatísticas parem de crescer e que a realidade mude de fato. Não podemos deixar que seja parte do nosso cotidiano acompanhar notícias de crianças e adolescentes baleados. Para aqueles que se interessam e desejam acessar estatísticas, o Futuro Exterminado está disponível e seguirá sendo atualizado para preservar a memória daqueles que sequer puderam desenhar seu futuro.