Débora Nunes de Souza Lima
Mestra (UFAL) e Doutoranda em Sociologia (UnB)
Nos últimos cinco anos, a população brasileira tem sentido o aumento da pobreza e todo o conjunto de consequências atreladas à redução da renda e à intensificação da desigualdade social. Parte significativa da elevação da pobreza e da redução da renda dos indivíduos e das famílias ocorreu em razão dos impactos causados pelo advento da pandemia de covid-19. De acordo com o IBGE, em 2020, nada menos do que 29,8% da população brasileira (quase 64 milhões de pessoas) viviam abaixo da linha da pobreza e da extrema pobreza.
Os brasileiros mais suscetíveis à privação alimentar, atualmente, são aqueles que vivem abaixo da linha da extrema pobreza, cuja renda diária é de US$ 1,90, o que, convertido em real, equivale a aproximadamente R$ 290 mensais. Esse é o parâmetro estabelecido pelo Banco Mundial para classificar as pessoas que vivem na extrema pobreza. No total, em 2020, 5,7% dos brasileiros viviam na extrema pobreza, o que representou por volta de 12,2 milhões de pessoas. No entanto, em alguns estados, como Alagoas, o percentual é bem maior. Em Alagoas, 11,8% da população vivem na extrema pobreza, o que corresponde a cerca de 400 mil pessoas.
O agravamento da pobreza também fez crescer o número de pessoas que passam fome ou vivem em insegurança alimentar no Brasil. De acordo com o mais recente Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (2022), elaborado pela Rede PENSSAN, 33 milhões de pessoas passam fome no país, e mais da metade da população brasileira (58,7%) está em insegurança alimentar. A experiência da insegurança alimentar, da privação absoluta e da fome constituem o elo final de um conjunto de fatores que, na trajetória dos indivíduos, pode culminar com a necessidade de furtar para sobreviver, o chamado furto famélico.
Caracteriza-se como furto famélico a prática de subtrair para si, sem o uso da violência, itens necessários à sobrevivência, como alimentos, remédios, produtos para a higiene, dentre outros objetos de valores irrisórios. Nessas situações, o Judiciário pode, de acordo com o Código Penal Brasileiro, em seus artigos 23, I e 24, aplicar uma excludente de ilicitude, forma de descaracterizar a conduta como crime, quando praticada em razão de uma necessidade urgente e imediata do indivíduo, bem como reconhecer o princípio da insignificância, em razão da ausência de periculosidade da ação, da mínima ofensividade do agente, da inexpressividade da lesão e do reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento.
O problema da aplicação do princípio da insignificância a casos como furtos famélicos ou furtos de bagatela, segundo têm alertado pesquisadores da área e defensores públicos, é justamente a trajetória dos indivíduos. A cada dia, tornam-se mais comuns casos como furtos de alimentos ou itens de higiene chegarem ao STJ e ao STF, pois as instâncias judiciais anteriores não reconheceram o princípio da insignificância. Questões como a reincidência penal, seja aquela formalmente constituída ou simples passagem pelo sistema de justiça criminal noutra oportunidade, pesam sobremaneira no momento de decidir quanto à insignificância do item furtado ou à necessidade do momento. Na prática, importa mais ao Judiciário quem é o indivíduo que furtou por necessidade imediata, para sobreviver, por fome, do que o valor da coisa subtraída e se dano significativo causou a outrem.
Nesse sentido, em 2019, a Pública, agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos, divulgou uma pesquisa feita no estado de São Paulo sobre furto famélico. Constataram que, entre 2014 e 2018, houve um crescimento de 16,9% dos casos de furtos de alimentos naquele estado. Dentre os acusados por furto famélico, um quarto estava desempregado, e a maioria dos furtos foi praticada contra estabelecimentos comerciais.
Recentemente, a Defensoria Pública do estado da Bahia publicou um levantamento feito no estado, no qual foi constatado que o número de pessoas presas por furtar itens de primeira necessidade, tais como comida, produtos de higiene e remédios, quase dobrou nos últimos cinco anos, tendo saído de 11,5%, em 2017, para 20,25%, em 2021.
Tendo em vista que esses levantamentos foram feitos em estados bastante populosos, SP e BA, situados em regiões diferentes do país, Sudeste e Nordeste, é possível projetar um crescimento, em âmbito nacional, de furtos famélicos ou de bagatela, em torno de 18% nos últimos quatro anos. Lembrando que tal projeção tem como base os casos notificados. Como há uma subnotificação considerável nesses e em outros casos criminais semelhantes, é muito provável que esse percentual de crescimento seja bem maior. De todo modo, não há dúvida: o aumento da pobreza, da fome e da desigualdade social no Brasil tem contribuído para situações extremas como furtos famélicos.