Forças públicas de segurança e a população de rua em tempos de Covid-19: encontros e desencontros
As pessoas em situação de rua são caracterizadas pelos agentes das forças públicas de segurança como poluidoras do ambiente urbano, como aquelas que reviram o lixo da cidade, que atrapalham a circulação das pessoas, infringem as normas do ordenamento do espaço urbano, usam drogas e cometem crimes
Emmanuelle Pereira Brandt de Azeredo*
Mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Criminologia, Política Criminal e Segurança Pública pela Rede LFG e em Segurança Pública e Atividade Policial pela Faculdade Arnaldo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais e Escrivã na Polícia Civil de Minas Gerais
Andréa Maria Silveira
Médica sanitarista e do trabalho, Mestra em Sociologia, Doutora em Ciências Humanas, professora associada do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG, Docente do Programa de Pós-graduação em Sociologia e do Mestrado Profissional em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência. É pesquisadora do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG)
Marcus Vinicius Gonçalves da Cruz
Doutor em Administração (UFMG). Pesquisador da Fundação João Pinheiro (FJP/MG). Professor da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Integrante do NESP/FJP e InEAC/CNPq. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Os órgãos de Segurança Pública, enquanto prestadores de serviço essencial, têm como missão a proteção da vida e da incolumidade das pessoas, além da manutenção da ordem pública e da paz social. A interação dos agentes de segurança com os sujeitos em situação de rua no espaço urbano ganha especial relevância em contextos graves, como no caso da pandemia da Covid-19.
Ficou evidenciado que a pandemia agravou a situação de vulnerabilidade de grande parcela da população, que inclui grupos específicos, como as pessoas em situação de rua, a população carcerária, as mulheres expostas à violência doméstica, os indígenas, os negros, dentre outros grupos socialmente desfavorecidos.
Estima-se que aproximadamente 221 mil pessoas no Brasil vivam de modo contínuo nas ruas e em outros espaços públicos, expostas a intempéries, insegurança e insalubridade. Práticas repressivas de controle social por meio da segurança pública e do sistema de “injustiça” criminal, de dificuldades no acesso à saúde pública, especialmente num contexto de pandemia da Covid-19, denotam uma sociedade marcada por privilégios e garantias de oportunidades para uma parcela seleta da sociedade.
No sentido de compreender a percepção das forças públicas de segurança sobre sua atuação profissional e seu contato com a população em situação de rua, especialmente em tempos de pandemia da Covid-19, realizou-se pesquisa qualitativa por meio da análise de entrevistas com agentes da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte (GMBH) e da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), cujos integrantes mantêm frequentes contatos e relações com os sujeitos em situação de rua em Belo Horizonte, Minas Gerais.
De modo geral, os agentes das forças públicas de segurança ouvidos nesta pesquisa evidenciaram que, ao agir, seguem seus próprios critérios de discricionariedade, no sentido de cumprir satisfatoriamente as exigências institucionais e da comunidade. Os protocolos legais e institucionais são, portanto, parcialmente (e, às vezes, minimamente) determinantes do processo decisório dos agentes. Os agentes das duas instituições citadas se autopercebem como heróis masculinos, que assumem os perigos de manter a ordem e lutar contra o mal comum, personificado na figura do “criminoso”, do “infrator”.
Por sua vez, os sujeitos em situação de rua são caracterizados pelos agentes das forças públicas de segurança como poluidores do ambiente urbano, como aqueles que reviram o lixo da cidade, que atrapalham a circulação das pessoas, infringem as normas do ordenamento do espaço urbano, usam drogas e cometem crimes.
A observação no contexto da pesquisa revelou a manifestação do receio de contaminação dos agentes em razão da exposição na execução de suas atividades, bem como o discurso de adequação ao recomendado pelas normas das instituições públicas de segurança. Apesar desses relatos (coletados ao longo do tempo da pandemia), a prática no cotidiano mostrou uma postura de relaxamento, seguindo para o desleixo e descaso, como a recusa de vacinação por alguns agentes, não utilização ou uso compartilhado de máscaras e a não manutenção de regras de distanciamento espacial, como se o contexto que deveria ser enfrentado pelos agentes fosse destemido. Ou seja, a pandemia seria apenas mais uma situação de desafio, restrição e crise.
Os agentes da Guarda Civil de Belo Horizonte, bem como da Polícia Militar mineira entrevistados, constataram o expressivo crescimento populacional e relataram um movimento migratório dos sujeitos em situação de rua, ultrapassando os limites do hipercentro do município e avançando para outros bairros, à procura de outros meios de sobrevivência e fonte de renda, como alimentos e materiais recicláveis. Em que pesem as diversas ações intersetoriais voltadas para o público em situação de rua no período pandêmico, como novos espaços de acolhimento, os agentes das forças públicas de segurança demonstraram estar alheios a tais ações.
Cabe destacar ainda que foram unânimes os relatos de que não são difundidos organizacionalmente treinamentos e orientações formais para lidar com a população em situação de rua, de modo específico, nem em tempos normais, nem em momentos de crise.
Os principais achados da pesquisa indicaram ainda que os agentes estatais lidam com as pessoas em situação de rua a partir de um viés preconceituoso e estigmatizante, em que o elemento urbano configura e estabelece os contornos da forma de atuação. O estudo evidenciou ainda que a pandemia da Covid-19, inicialmente, despertou nos agentes certo temor e tensão, ao trazer para perto de si o inimigo desconhecido, o que depois cedeu lugar para certa acomodação e assimilação dos agentes ao contexto. Ainda foi possível identificar que as atuações dos agentes de segurança, quando direcionadas para o público em situação de rua, envolveram, em essência, atuações repressivas e “higienistas”, de fiscalização e controle das pessoas e do espaço urbano, geralmente voltados para interesses de outros públicos como comerciantes, agentes imobiliários, residentes dentre outros, e não aquelas necessidades das populações vulneráveis.
Conclui-se serem fundamentais a inclusão e a participação desses agentes em políticas e práticas intersetoriais que articulam diferentes organizações e agências público-privadas em prol de um ambiente urbano mais acolhedor e uma sociedade mais igualitária, bem como a estruturação de novos padrões de formação continuada e de socialização, que incluam um olhar multidisciplinar para as questões sensíveis da sociedade e para os públicos vulneráveis.
* Texto originalmente publicado na sessão Dossiê: Covid 19 da Revista Brasileira de Segurança Pública n. 31. A íntegra pode ser acessada no endereço aqui.