Feminicídios caem, mas outras formas de violência contra meninas e mulheres crescem em 2021
No Brasil, uma mulher é vítima de feminicídio a cada 7 horas, o que significa dizer que ao menos 3 mulheres morrem por dia no país por serem mulheres
Juliana Martins*
Psicóloga, Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP e Coordenadora Institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Amanda Lagreca
Mestranda em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP e Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Samira Bueno
Doutora em Administração Pública e Governo pela FGV/ EAESP e Diretora-Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Desde o 11º Anuário, publicado em 2017, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulga e monitora os números relacionados à violência contra as mulheres no Brasil. De lá para cá, muita coisa mudou (ou está mudando): as instituições policiais e de justiça criminal tiveram que olhar para os crimes letais contra as mulheres de forma a incorporarem um olhar de gênero no atendimento, nas investigações policiais e em seus desdobramentos. Isso serviu, na prática, para que alguns estados melhorassem os registros, criassem unidades especializadas de atendimento às mulheres, assim como núcleos de estudos para compreender como se dá a violência contra meninas e mulheres e quais as formas possíveis de enfrentamento.
No entanto, ainda estamos lidando com números que traduzem uma violência cotidiana, que acontece principalmente dentro das casas dessas mulheres e, infelizmente, cometida por pessoas conhecidas, com as quais têm ou tiveram algum tipo de vínculo afetivo.
O cenário retratado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 evidencia a queda de crimes letais contra a mulher, mas não a diminuição da violência: houve um sensível aumento das denúncias de lesão corporal dolosa e das chamadas de emergência para o número das polícias militares, o 190, ambas no contexto de violência doméstica, assim como aumento dos casos notificados de ameaça (vítimas mulheres).
Entre 2020 e 2021, vimos um acréscimo significativo de 23 mil novos chamadas de emergência para o número 190 das polícias militares solicitando atendimento para casos de violência doméstica, com variação de 4% de um ano para o outro. O que esse número significa? Ao menos uma pessoa ligou, por minuto, em 2021, para o 190 denunciando agressões decorrentes da violência doméstica.
Se, por um lado, o chamado de emergência para casos de violência doméstica aumentou, houve uma queda significativa de 5,3% no total de chamadas 190, por outros motivos, no mesmo período. Como as polícias militares estão lidando com as chamadas recebidas em contexto de violência doméstica e como se dá o atendimento às vítimas ainda é uma questão a ser explorada; o que se sabe, contudo, é que mais pessoas têm procurado as instituições policiais em busca de ajuda, o que pode indicar que as mulheres têm sofrido mais violência ou que as pessoas estão menos tolerantes às violências cometidas contra a mulher no âmbito doméstico, já que a ligação para a emergência não precisa ser feita pela vítima – pode ser um vizinho, familiar, amigo.
Ao tentarmos entender a distribuição de ligações de emergência para violência doméstica e casos de feminicídio nas UFs brasileiras, destacamos que estados como Acre e São Paulo tiveram um aumento nos números de ligações de emergência para violência doméstica e nos dois estados observamos uma queda nos números de feminicídios. Por outro lado, em Pernambuco e Rio de Janeiro aconteceu o inverso: queda nas chamadas de emergência para o 190 e aumento de feminicídios. É precoce dizer que há uma relação entre esses fatores, mas é uma questão que merece ser estudada.
Praticamente todos os indicadores relativos à violência contra mulheres apresentaram crescimento no último ano: houve um aumento de 3,3% na taxa de registros de ameaça, e crescimento de 0,6% na taxa de lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica entre 2020 e 2021. Os registros de crimes de assédio sexual e importunação sexual cresceram 6,6% e 17,8%, respectivamente.
Entre 2020 e 2021, houve uma queda de 3,8% na taxa, por 100 mil mulheres, dos homicídios femininos. No caso dos feminicídios, tipificação incluída pela Lei 13.104/2015 enquanto qualificadora do crime de homicídio, a queda foi de 1,7% na taxa entre os dois anos. Mesmo com a variação, os números ainda assustam: nos últimos dois anos, 2.695 mulheres foram mortas pela condição de serem mulheres – 1.354 em 2020 e 1.341 em 2021.
Há uma preocupação relevante na classificação do crime: por se tratar de uma lei que deixa a cargo dos servidores a correta tipificação, ainda há desafios – em diferentes graus, a depender das capacidades institucionais dos estados – em enquadrar o crime enquanto feminicídio. A proporção de feminicídios em relação aos homicídios dolosos de mulheres nos ajuda a compreender esse fenômeno – no âmbito nacional a proporção é de 34,6% em 2021. No caso do Ceará, mais dramático, há apenas 9,1% dos feminicídios no total de homicídios de mulheres. Em Tocantins, em sentido oposto, a proporção é de 55,3%, tal como o Distrito Federal, com proporção de 58,1%. Percebemos que as autoridades policiais possuem mais facilidade em classificar um homicídio de uma mulher enquanto feminicídio, quando este ocorre no contexto doméstico, com indícios de autoria conhecida: o companheiro ou ex-companheiro.
Algumas especificidades estaduais merecem ser aqui destacadas – mesmo com possíveis subnotificações, o cenário nos ajuda a ter uma compreensão das realidades locais: a taxa de feminicídios por 100 mil mulheres, em 2021, foi de 2,6 no Acre, Tocantins e no Mato Grosso do Sul, mais do que o dobro da taxa nacional (1,2 feminicídios por 100 mil mulheres); São Paulo, em contrapartida, teve uma taxa de 0,6 mulheres vítimas de feminicídio a cada 100 mil mulheres.
Analisar as demais mortes violentas intencionais de mulheres nos ajuda a compreender o fenômeno do feminicídio e colaborar para a sensibilização das autoridades policiais e outros órgãos governamentais para a realização de políticas públicas que enfrentem o problema a partir das suas devidas dimensões.
O que verificamos, contudo, é que as mulheres são vítimas do feminicídio em praticamente todas as faixas etárias, com prevalência das mortes ao longo de sua vida reprodutiva. Conforme evidenciado em outras pesquisas, o rompimento da relação é, muitas vezes, a forma que a mulher busca de interromper a violência, mas acaba sendo também o momento em que ela fica mais vulnerável, incorrendo no crescimento da violência.
A diferença racial nas vítimas de feminicídio é menor do que a diferença nas demais mortes violentas intencionais. 37,5% das vítimas de feminicídio são brancas e 62% são negras. Nas demais mortes violentas intencionais, contudo, 70,7% são negras e apenas 28,6% são brancas. Em última instância, o que os dados nos indicam é uma possível subnotificação das negras enquanto vítimas de feminicídio.
Além da questão da raça/cor e da idade, o autor da violência que vitimiza mulheres também é ponto de reflexão. Nas demais mortes violentas intencionais, o principal autor é desconhecido (82,7%). Nos feminicídios, contudo, o principal autor é o companheiro ou ex-companheiro da vítima (81,7%), seguido de parente (14,4%), o que parece indicar que os feminicídios íntimos são aqueles em que as Polícias têm maior capacidade de reconhecer.
O principal instrumento empregado nos feminicídios são armas brancas (50%), seguido de armas de fogo (29,2%); em sentido inverso, o principal instrumento nos demais homicídios de mulheres são armas de fogo (65%), seguido de armas brancas (22,1%). Diferentes estudos já demonstraram que a existência de arma de fogo na residência aumenta o risco de a mulher em situação de violência doméstica ser morta por seu parceiro. Um estudo conduzido por Sorenson and Wiebe nos EUA mostrou que, nas residências de mulheres que sofriam violência doméstica recorrentemente, a existência de arma de fogo era 20% superior à média, o que amplia significativamente o risco dessa mulher ser morta. Este achado nos alerta para o risco de crescimento dos feminicídios com as mudanças promovidas pelo Governo Federal na legislação de controle de armas, cada vez mais permissiva e que resultou na ampliação drástica do número de civis armados.
As residências continuam sendo, desde sempre, o local em que as mulheres são mais vítimas de feminicídio. 65,6% do total de crimes cometidos foram realizados na residência; no caso das demais mortes violentas, o principal local foi a via pública (37,0%).
Em suma, os dados indicam que uma mulher é vítima de feminicídio a cada 7 horas, o que significa dizer que, ao menos 3 mulheres morrem por dia no Brasil por serem mulheres.
Texto em versão condensada. Para obter a versão originalmente publicada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, acesse: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2022/07/10-anuario-2022-feminicidios-caem-mas-outras-formas-de-violencia-contra-meninas-e-mulheres-crescem-em-2021.pdf