Multiplas Vozes 08/02/2023

Federalização ou distritalização das forças do Distrito Federal

Convém ao governo federal assumir que, em parte, a segurança pública e a gestão das corporações do Distrito Federal já são federalizadas. O que falta, portanto, é a regulamentação da natureza jurídica das forças estabelecidas na Constituição Federal, as quais são partes da União e utilizadas pelo governo distrital

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais (UnB); membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

Os atentados golpistas de 8 de janeiro de 2023 levantaram questionamentos sobre o papel das polícias da Capital Federal. Particularmente, causou estranheza o fato de parcela do efetivo da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) não ter se empenhado na contenção dos distúrbios provocados por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. Essa situação comprometeu a segurança dos Poderes da República. Como resposta imediata, o Governo Federal adotou intervenção na área de segurança pública da Capital, a qual levou para o âmbito nacional o tema da federalização ou distritalização das forças do Distrito Federal. Isso tem gerado inquietações nas corporações, bem como no cenário político distrital.

As corporações de segurança pública do Distrito Federal possuem posição anômala, pois mesmo sendo equivalentes às estaduais, elas são organizadas e mantidas pela União; conforme prescrito no Art. 21, inciso XIV, da Constituição Federal. Nesse caso, há um fundo constitucional destinado ao Distrito Federal para a manutenção delas. Note-se, as forças do Distrito Federal se subordinam ao governador, assim como as das demais unidades da federação; porém, o governo distrital conta com recursos da União para o custeamento delas. Desse modo, os servidores das forças do Distrito Federal possuem um pé no governo federal e outro no distrital. Por exemplo, especificamente os integrantes da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), embora vinculados ao Distrito Federal, são submetidos ao mesmo regime jurídico dos membros da Polícia Federal (PF), o qual é previsto na Lei Nº 4.878/1965.

Essa arquitetura híbrida tem gerado controvérsias, notadamente no encaminhamento de pautas sobre vencimentos dos servidores e modificações nas carreiras das corporações da Capital Federal. Por exemplo, no quesito salário dos policiais do Distrito Federal o governador não pode conceder reajustes sem a aquiescência do executivo federal; assim a tramitação de propostas de mudanças nos vencimentos desses servidores ocorre no Congresso Nacional e não no legislativo distrital. Aliás, o Supremo Tribunal Federal (STF) já firmou entendimento, via Súmula Vinculante nº 39, que compete privativamente à União legislar sobre vencimentos dos membros das polícias civil e militar e do corpo de bombeiros militar do Distrito Federal. Entretanto, mesmo a União sendo responsável por manter financeiramente as forças do Distrito Federal, há tradição de o governo distrital encaminhar uma mensagem propondo modificações. Destaca-se que, a fim de respeitar um pacto federativo, as propostas do governo distrital relacionadas aos servidores das corporações têm sido referendadas pela União.

Portanto, o governo do Distrito Federal possui autonomia relativa quanto à gestão das forças de segurança pública. Nesse campo, por exemplo, o governador distrital possui competência para nomear os chefes e comandantes das corporações, mas não pode dispor, isoladamente, sobre valores dos vencimentos, dimensões dos efetivos, organizações das carreiras. Aliás, consta no Art. 32, § 4º, da Constituição Federal que o governo do Distrito Federal não possui polícias civil, penal, militar e corpo de bombeiros militar, mas as utiliza segundo prescrição legal. Entretanto, o presente artigo carece de regulamentação, logo as tratativas entre o governo federal e distrital ocorrem por tradição e medidas precárias, as quais proporcionam instabilidades quanto à natureza jurídica das corporações.

Com os atentados de 8 de janeiro, a tese da federalização das forças da Capital Federal ganhou repercussão nacional. Basicamente, a federalização significa que a União possuiria plena gestão sobre as corporações, como já faz com o Poder Judiciário, o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e a Defensoria Pública dos Territórios. Tais órgãos, assim, como as corporações da Capital Federal, estão elencados no rol das competências exclusivas da União (Art. 21, da Constituição Federal). No entanto, a federalização, com repasse da gestão das corporações para a União, não é equação tão simples, porquanto poderia ser entendida como interferência na autonomia do governo distrital. Ademais, o cotidiano da criminalidade do Distrito Federal iria parar na mesa do ministro da Justiça, o que poderia causar empecilhos ao executivo federal.

Contrário à federalização, há a tese da distritalização das corporações, o que significaria destinar completa e definitivamente tais organizações para o governo distrital. Com isso, o governador do Distrito Federal se equipararia aos demais congêneres estaduais, tendo domínio sobre polícias e seus servidores. Nesse caso, as corporações distritalizadas não ficariam mais sujeitas ao hibridismo posto no texto constitucional. Todavia, pelo fato de Brasília ser região do Distrito Federal onde mais se concentram as sedes físicas dos Poderes da República, ainda caberia às corporações distritais realizarem a segurança da região. Não obstante, a União não teria mais instrumentos legais de gerência sobre as corporações distritais, passando a depender de acordos e da vontade política do governo do Distrito Federal.

Há ainda outra tese recentemente exposta pelo ministro da Justiça Flávio Dino, a qual seria uma federalização parcial, como a criação de uma Guarda Nacional responsável por proteger a zona cívica, onde estão os órgãos federais e sedes dos Três Poderes. Além disso, a adoção de gestão compartilhada entre governo federal e distrital na área de segurança pública. A ideia da Guarda Nacional, uma força exclusiva para as áreas dos Poderes da República, praticamente insularia parte de Brasília das demais regiões do Distrito Federal, o que seria custoso e não consideraria a natureza singular desse ente da federação e dos encargos da União para com ele.  Além do mais, não alcançaria a problemática das forças da Capital Federal, a qual é a imprecisão quanto às suas vinculações jurídicas. Por sua vez, a gestão compartilhada na segurança pública do Distrito Federa já é prevista no Art. 32, § 4º da Constituição Federal, contudo a União até então não regulou o seu papel nesse campo.

Em que pesem as controvérsias do modelo híbrido das forças da Capital Federal previsto na Carta Fundamental, ele tem razão de existir. Como se sabe, as sedes dos Poderes da República, embaixadas, organismos nacionais e internacionais, bem como diversas autoridades de nacionais e estrangeiras estão situadas, em sua maioria, na região de Brasília. Mas Brasília não é uma redoma, ela é uma das regiões do Distrito Federal. Nesse caso, a União possui responsabilidade na ordem e segurança das estruturas dos Poderes da República e do próprio Distrito Federal, o que justifica ela manter e organizar as corporações da Capital Federal. Ora, caso tais forças fossem exclusivamente distritais, o risco de elas estarem sujeitas à milicização, politização, precarização e desvalorização de seus servidores seria maior, o que infelizmente é a realidade em muitas corporações estaduais. Por isso, a competência da União, para manutenção e organização das corporações da Capital Federal, apesar dos contrassensos, é estratégica e visa garantir padrão de segurança para o coração político-administrativo do país.

As medidas da intervenção federal decorrentes dos ataques de 08 de janeiro não devem se resumir a “desbolsonarizar” as corporações e responsabilizar os agentes envolvidos diretamente nessa tragédia. O desafio é consolidar efetivas polícias de Estado na capital do país. Para tanto, convém ao governo federal assumir que, em parte, a segurança pública e a gestão das corporações do Distrito Federal já são federalizadas. O que falta, portanto, é a regulamentação da natureza jurídica das forças estabelecidas na Constituição Federal, as quais são partes da União e utilizadas pelo governo distrital. Afinal, essa é uma competência constitucional da União, a qual se mostrou imprescindível frente aos atentados praticados contra os Poderes da República e o regime democrático do país.

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