Múltiplas Vozes 27/09/2023

Extermínio.gov

O assassinato de crianças aparece como a faceta mais brutal de um problema nacional que ameaça a vida dos brasileiros mais humildes e as instituições democráticas do país. É preciso agir

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Diogo Lyra

Daniel Hirata

Carolina Grillo

Renato Dirk*

Coordenadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)

Em 15 de abril de 1996, policiais do 9º BPM faziam uma operação no conjunto habitacional do Amarelinho, em Acari. Era dia de sol e, nesse momento, o menino Renato da Silva Paixão, de 6 anos, brincava com Maicon de Souza, 2 anos, no portão de sua casa. Sem aviso, as crianças foram atingidas por tiros da PM: Renato foi alvejado na boca e Maicon levou um tiro na cabeça, vindo a falecer. Em 7 de maio, três semanas após o assassinato de Maicon, os mesmos policiais do 9º BPM mataram o menino Luciano Silva de Jesus com um tiro na cabeça. Luciano, que também tinha 2 anos de idade, morreu quando estava no colo da mãe, enquanto passeavam pela favela do Muquiço, em Guadalupe. Esses episódios aconteceram pouco menos de três anos após a Chacina da Candelária, que havia se tornado um marco político do extermínio de menores no Rio de Janeiro. Sem coincidência, os autores dessas mortes pertenciam ao mesmo batalhão dentro do qual se formou o grupo de extermínio conhecido como Cavalos Corredores, responsável pelas chacinas de Acari (1990), da Candelária e de Vigário Geral (1993).

Apesar das aproximações, uma diferença crucial separava os crimes dos Cavalos Corredores dos assassinatos em nome da lei promovidos pelo 9º BPM: estes foram premiados pelas mortes de Maicon e Luciano com bônus que variavam entre 50 e 150% do valor de seus salários, a chamada “gratificação por bravura”. Instituída em novembro do ano anterior, um dos critérios de avaliação que permitiam o recebimento da gratificação se baseava na quantidade de mortos em confronto. Quanto maior a taxa de letalidade do PM, maior a bonificação. A gratificação por bravura é o momento da consolidação da vitória das forças autoritárias presentes nas corporações policiais contra o projeto democrático instituído com a Constituição de 1988, no plano nacional; e contra a política de segurança cidadã de Brizola, implantada na gestão anterior. A desestabilização política de Brizola por meio de uma sequência de grandes chacinas – como as de Acari, Candelária, Vigário Geral e Nova Brasília – permitiu não só a continuidade da brutalidade policial dos tempos autoritários, como, sobretudo, a incorporou como elemento constitutivo das polícias, com o advento da gratificação por bravura. Esse é, portanto, um dos momentos inaugurais que assinalam o abandono dos capuzes dos matadores, permitindo que a violência dos grupos de extermínio fosse praticada de forma legal, sob a proteção da farda e com prêmios materiais garantidos pelo próprio Estado. Vivemos as consequências desse episódio até hoje.

No dia 12 de agosto de 2023, a menina Eloah da Silva dos Santos, de 5 anos, brincava no quarto de sua casa, na favela do Dendê, na Ilha do Governador. Enquanto se divertia pulando na cama, foi atingida com um tiro no peito e veio a óbito. O disparo foi efetuado pela polícia quando os moradores da localidade protestavam contra o assassinato de um jovem de 17 anos no dia anterior, também por policiais militares. Pouco menos de uma semana antes, no dia 7 de agosto, Thiago Meneses Flausino, de 13 anos, foi executado por policiais na Cidade de Deus, quando passeava com um amigo numa motocicleta dentro da favela. Neste caso, a manifestação que se seguiu também foi reprimida pelas forças da ordem. A PMERJ publicou em uma rede social que se tratava de um criminoso morto em confronto com a polícia e foi obrigada judicialmente a apagar a publicação graças a uma ação movida pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública. Um mês antes da morte de Eloá, o menino Djalma de Azevedo, 11 anos de idade, foi morto por policiais quando estava a caminho da escola, em Maricá.

Não haveria espaço suficiente neste texto caso quiséssemos elencar nominalmente o leque de situações criadas pelas polícias que tiraram a vida de crianças dormindo no seu quarto, a caminho da escola, comprando um lanche, passeando com os pais, brincando no portão de casa, entre outras atividades que em nada, absolutamente nada, têm a ver com segurança pública, mas que são tratadas como se assim o fossem. Aqui vemos o resultado desse processo que conferiu, camada por camada, a carapaça autoritária que garantiu que a polícia mantivesse o padrão de atuação dos tempos da ditadura em plena democracia e consagrou o descrédito da legalidade para se lidar com a violência urbana. Nesse sentido, é emblemático que hoje executores de chacinas não precisem esconder o rosto com capuz nem que a trama de suas ações se desenrole na obscuridade de um grupo de extermínio. As operações policiais, e as violações constantes dos princípios democráticos mais fundamentais que os caracterizam, deram conta de absorver tal brutalidade e regurgitá-la sob a forma de ações oficiais, de combate ao crime, em que uma criança morta enquanto dorme é apenas uma externalidade negativa dessa guerra contra pobres, negros e favelados. O coroamento da oficialização do autoritarismo é a impossibilidade de se indignar frente à morte de uma criança que fazia parte da comunidade por meio da repressão violenta às manifestações populares, com o uso de armamento letal, como a bala que atingiu Eloah.

Em recente declaração à imprensa, a mãe de Ágatha Felix, uma menina de 8 anos morta pela polícia com dois tiros nas costas no Complexo do Alemão em 2019, expressou suas condolências à mãe de Eloah. Já são 4 anos desde o assassinato de Ágatha, que até hoje não foi julgado. Ainda mais grave, o caso do menino Maicon, que morreu no portão de casa aos 2 anos de idade com um tiro na cabeça desferido pela polícia em 1996, nunca passou da fase de inquérito. Há 23 anos os pais de Maicon aguardam justiça por um crime que já prescreveu, graças à inação do Ministério Público. Segundo recente pesquisa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, de 1999 até hoje, 15.614 casos de homicídio e tentativa de homicídio contra crianças foram registrados no Rio de Janeiro, sob a forma de inquéritos policiais. Destes, 9.428 casos ainda se encontram na fase de investigação, sem solução aparente. Isso significa que 6 em cada 10 crimes contra a vida perpetrados contra crianças no Rio de Janeiro permanecem impunes, até que sejam arquivados pelo Ministério Público. Lado a lado com as corporações policiais, o MPRJ se mantém como responsável histórico pelo assassinato de toda a sorte de pobres e negros no Rio de Janeiro, incluindo aí centenas de crianças.

Entretanto, o problema há muito deixou de ser uma sombria singularidade desse estado. No espaço de uma semana, chacinas policiais em São Paulo, Bahia e no próprio Rio de Janeiro somaram 45 mortos no início de agosto. As recentes tensões políticas que ameaçaram a democracia brasileira tiveram o êxito de demonstrar a adesão das polícias estaduais ao projeto autoritário que rondou o país nos últimos quatro anos, nacionalizando um problema que insistentemente vinha sendo tratado como questão local. Nesse sentido, o assassinato de crianças aparece como a faceta mais brutal de um problema nacional que ameaça a vida dos brasileiros mais humildes e as instituições democráticas do país. É preciso agir.

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