Eu não queria mais ter de falar sobre Jacarezinho, mas não consigo!
Informações acessadas sobre o trabalho pericial do caso, trazidas pela mídia, atestam que o responsável pelo laudo não teria sequer retornado ao local do homicídio, tampouco teria interagido com testemunhas na cena do crime
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O caso Jacarezinho já foi tratado em nossa coluna exatamente em três oportunidades, duas das quais de forma exclusiva e uma terceira vez dividindo espaço com outros casos. Cheguei a pensar que o assunto estivesse esgotado e que nada mais haveria a dizer ou comentar, mas estava enganado! No último dia 06 de maio, notícias divulgadas pela mídia trouxeram muita inquietação a quem acompanha os desdobramentos do caso e desta vez as notícias envolviam a perícia oficial.
Apenas para relembrarmos: no dia 06 de maio de 2021, uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro resultou na morte de 29 pessoas, das quais um policial da corporação, e 28 civis, tornando esse evento “A operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro”.
A polêmica desta vez ficou por conta da divulgação de que, dois dias após o Ministério Público ter se pronunciado pelo oferecimento da denúncia de dois policiais civis envolvidos naquela que seria uma execução de uma das vítimas da chacina, a Polícia Civil do RJ produzira um laudo que beneficiaria os policiais, contrapondo provas testemunhais presentes nos autos.
A primeira questão a ser considerada é de ordem jurídica: um embate entre aqueles que entendem que após o oferecimento da denúncia contra os dois policiais, o que ocorreu exatamente no dia 14 de outubro de 2021, não caberia mais qualquer procedimento investigativo por parte da Polícia Civil, e os que pensam diferente. O promotor de justiça André Cardoso, coordenador da força-tarefa que analisou a operação do Jacarezinho, foi enfático em suas declarações: “O laudo é irregular porque a denúncia cessa a atividade investigatória. O documento foi solicitado pelo delegado e produzido após o oferecimento da denúncia. Não havia mais investigação em andamento, o MP já havia formado sua opinião sobre o caso”.
Buscando esclarecer nossos leitores, trazemos aqui o trecho da lei que trata do tema, a saber, o Artigo 181 do CPP:
Art. 181. No caso de inobservância de formalidades, ou no caso de omissões, obscuridades ou contradições, a autoridade judiciária mandará suprir a formalidade, complementar ou esclarecer o laudo. (Redação dada pela Lei nº 8.862, de 28.3.1994)
Parágrafo único. A autoridade poderá também ordenar que se proceda a novo exame, por outros peritos, se julgar conveniente.
A limpidez e clareza do texto legal não parecem suscitar dúvidas de interpretação!
O documento que gerou a polêmica foi intitulado Laudo Complementar de Exame de Local, tendo sido elaborado a partir da requisição de um delegado de polícia, que, segundo consta nas matérias midiáticas, ocorrera às 17h42 do dia 15 de outubro — ou seja, além da própria produção do laudo, também a solicitação para que ele fosse elaborado fora feita após o fim da investigação da fase de inquérito.
Informações acessadas sobre o trabalho pericial em questão e trazidas pela mídia atestam que o responsável pelo laudo não teria sequer retornado ao local do homicídio, tampouco teria interagido com testemunhas na cena do crime. Importante saber que um exame pericial possível, ao longo dos cinco meses de investigação, que seria uma Reprodução Simulada com versões apresentadas pelos policiais, bem como pelas testemunhas, em nenhum momento foi solicitado pela Polícia Civil junto ao Ministério Público.
Do mesmo lado do MP está a Defensoria Pública, que teria pedido a retirada do laudo dos autos do processo, mas a Justiça manteve o documento na ação.
Já a Polícia Civil informou que “o laudo de local produzido após o encerramento das investigações pelo Ministério Público foi necessário para confrontar a versão das testemunhas que prestaram depoimento no MP, e que a Polícia Civil não tinha conhecimento, com as provas obtidas nos autos”. Segundo o texto, a “Polícia Civil trabalha independente do Ministério Público e busca a verdade real dos fatos, não para defesa ou acusação”.
Além de todo esse embate jurídico, temos ainda como pano de fundo questões relacionadas à vinculação da perícia oficial do RJ à PCRJ (autonomia de órgãos periciais oficiais), além da sua estrutura organizacional. Desde que surgiram as primeiras iniciativas que criaram equipes especializadas que incluíam peritos criminais lotados em Delegacias Especializadas de Homicídio (SP e RJ), o que se deu por volta do ano 2010, tornei-me crítico dessa estratégia, manifestando minha opinião e a argumentação em texto intitulado “Perícia Criminal: a última fronteira da elitização da Justiça?”
Vejo essa vinculação perigosa, e esse tipo de caso reforça essa preocupação. Estamos diante de um viés que deve ser evitado em um trabalho que se espera independente e imparcial: o viés institucional, como gosto de chamá-lo.
Nesta mesma semana em que me debrucei sobre o tema recebi oportunamente um artigo que desejo recomendar: “O Estado que mata”, da pesquisadora Natalia Pires de Vasconcelos – didático, impactante e oportuno para esta discussão. Natalia por sua vez apoia seu artigo em outra obra: “Justiça e Letalidade Policial”, de autoria de Poliana da Silva Ferreira, que trata do papel do direito e das organizações do sistema de Justiça, lançado pelo Selo Plural, da editora Jandaíra.
Em um momento tão delicado de nossa história, sinto calafrios ao perceber que essa notícia nos faz lembrar de um dos períodos mais tristes da história da perícia oficial brasileira: aquele em que alguns de nossos pares fizeram de seu trabalho a chancela de um regime autoritário e ditatorial. Fiquemos, portanto, com as reflexões!