Múltiplas Vozes 04/12/2024

“Eu namoro a vida, mas a morte me paquera”: a Chacina da Candelária e as vidas interrompidas de crianças e jovens no Brasil

Decorridos mais de 30 anos desde o massacre, continuam nos noticiários relatos de crianças mortas por policiais; e permanecem as dificuldades para que as investigações possam contribuir para que as pessoas envolvidas sejam devidamente responsabilizadas

Compartilhe

Cristiane do Socorro Loureiro Lima

Associada Sênior do Fórum Brasileira de Segurança Pública. Tenente-Coronel da RR da Polícia Militar do Pará. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutoranda em Democracia no Século XXI na Universidade de Coimbra (Portugal)

Mercia Brito

Doutoranda em Governação, Conhecimento e Inovação, na Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre em Intervenção social, Inovação e Empreendedorismo na Universidade de Coimbra (Portugal). Diretora Executiva do Cinema Nosso

Em 30 de outubro de 2024 estreou, na Netflix, a minissérie “Os quatro da Candelária”, que rapidamente alcançou o topo da lista das séries mais vistas na plataforma, mantendo-o por semanas. O criador do conteúdo, Luís Lomenha, apresenta na produção reflexões sobre a vida e sonhos de quatro personagens (crianças e adolescentes) nas 36 horas que antecederam a Chacina da Candelária, considerado um dos crimes mais graves no Brasil.

Esse crime ocorreu em 23 de julho de 1993, perto da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Cerca de 72 adolescentes e crianças viviam naqueles arredores. Consta que em torno de 40 pessoas dormiam no local naquela noite. A maior parte delas já estava lá por serem vítimas de abandono, violência física e sexual, desamparo das famílias e do poder estatal. Naquela noite, dois carros pararam perto da igreja. Os veículos transportaram atiradores que dispararam contra as pessoas que dormiam no local, o que resultou em vários feridos e oito mortos: uma criança, cinco adolescentes e outros dois jovens. As apurações identificaram que quatro vítimas foram mortas a tiros na escadaria; uma foi assassinada ao tentar fugir; outra morreu em decorrência dos ferimentos, e duas foram levadas de carro pelos policiais militares até o Aterro do Flamengo, onde foram executadas. [1]

Com ampla repercussão e mobilização social, ocorreu a condenação de dois policiais militares e de um ex-policial, mas todos já estão em liberdade; os outros suspeitos da ação foram absolvidos. Na época sem apoio devido às vítimas sobreviventes, os depoimentos foram confusos e geraram controvérsias para identificação dos suspeitos, sendo que um dos sobreviventes foi testemunha fundamental para a elucidação do caso, assim como a confissão de Nelson Oliveira dos Santos Cunha, um ex-policial do Choque. Conhecido como Cunha, ele confirmou a participação no crime e se entregou às vésperas do julgamento, em 1996.

Sobre procedimentos judiciais e realização da “justiça”, citamos a declaração de Fátima Silva, uma das fundadoras do Movimento Candelária Nunca Mais. Ela afirmou que o movimento vai além de pedir justiça pelos oito assassinados.  “A gente tem hoje crianças que nem chegam a dez anos de idade. A gente quer avanço nas políticas públicas, protagonismo, que as crianças e adolescentes possam viver em paz nas suas comunidades”[2].

Na minissérie, dirigida por Lomenha e por Márcia Faria, há uma chamada para a consciência social com uma abordagem que destaca a subjetividade e a humanidade dos jovens, revelando suas esperanças, sonhos e perspectivas, que mantinham mesmo num cenário de extrema vulnerabilidade. Dessa forma, a produção prioriza a dignidade das vítimas e dos sobreviventes, fazendo emergir questões profundas sobre infância, juventude, família, direitos e desigualdades sociais. Em vez de focar a brutalidade do massacre, o enredo explora a resiliência dessas crianças. Tal escolha narrativa reflete um esforço ético e estético de respeitar suas histórias, oferecendo um olhar que humaniza as crianças e denuncia o impacto duradouro da violência em suas vidas.

Em sintonia com essa perspectiva, somos convidados a refletir que, passados mais de 30 anos, continuam nos noticiários relatos de crianças mortas por policiais e permanecem as dificuldades para que as investigações possam contribuir para que as pessoas envolvidas sejam devidamente responsabilizadas.

Atravessam suas vidas as vulnerabilidades, os anseios de vida e o medo constante da morte, como identificamos na fala de um dos sobreviventes “Eu namoro a vida, mas a morte me paquera. Mas um dia ela veio, eu não estava preparado para ir (..)[3]

Até quando essa situação perdurará?

Até quando crianças terão seus sonhos ceifados pela violência?

Lembramos da menina Agatha, que, com apenas 8 anos de idade, foi baleada nas costas em setembro de 2019 no Complexo do Alemão (Rio de Janeiro) quando estava dentro de uma Kombi com sua mãe, Vanessa, que afirma nem ter entendido no momento o que estava acontecendo, pois ouviu um barulho que parecia uma bomba e viu a filha gritando “Mãe, mãe, mãe” e ainda falou “Filha, calma”.

Para nós é grave e doloroso pensar que uma menina de 8 anos perdeu a vida assim, porém o 1° Tribunal do Júri da Capital do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro entendeu, em novembro de 2024, que o policial militar Rodrigo José de Matos Soares, autor do disparo de fuzil que resultou na morte dela, de fato atirou, mas “não teve a intenção de matar”. O júri popular o absolveu do crime, indicando  uma tolerância social a essa ação.

Citamos mais alguns casos como o de Thiago, de 13 anos, morto por policiais na Cidade de Deus (Rio de Janeiro) em 2023, segundo inquérito feito pela própria polícia. No mesmo ano, Eloáh, de 5 anos, foi morta pela polícia no Morro do Dendê, segundo investigação do Ministério Público. Recentemente, em 05 de novembro de 2024, o menino Ryan, de 4 anos, brincava em frente à casa de uma prima no Morro do São Bento, em Santos (litoral de São Paulo), quando foi atingido por um tiro. Ele foi levado ao hospital, mas não resistiu. O caso ainda deve ser apurado, mas há indicação de que o disparo saiu de uma arma da Polícia Militar, segundo declaração dada pelo porta-voz da Polícia Militar de São Paulo.

Essa triste realidade ainda está longe de ser transformada, como mostra o Boletim Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão[4], produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, que identificou que os agentes de segurança do estado mataram 243 crianças e adolescentes em 2023, sendo que esses dados englobam 9 estados brasileiros (Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo), ou seja, nenhum da região Sul nem da região Centro-Oeste.

Salientamos que muitas mortes dessas crianças e jovens sequer são registradas como resultantes de ação policial, mas, como homicídios, “entram para as estatísticas de homicídios como se fossem efeitos colaterais aceitáveis, ou balas perdidas, ou azares, ou acidentes pontuais”, afirma Silvia Ramos, porta-voz da Rede de Observatórios.[5]

“Não dá pra ter paz e estar vivo ao mesmo tempo”, diz o personagem Jesus, da minissérie. Questionamento forte e atual, mostrando que a reflexão da Candelária nos desafia a pensar como construir um país no qual crianças e adolescentes sejam protegidos, valorizados e respeitados em sua dignidade e subjetividades.

Sobre a proteção de crianças e adolescentes no Brasil cabe destacar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, marco legal que buscou promover o fortalecimento de políticas públicas e maior garantia e conscientização sobre os direitos infantojuvenis, bem como reconstruir a imagem dos antes nomeados “menores de rua”. Também mencionamos a importância do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo[6] (SINASE), aprovado em 2006 e regulamentado em 2012.

Há muito a se percorrer e a memória dessas vidas interrompidas deve ser um chamado à ação coletiva, para transformação da indignação em políticas públicas efetivas, para a não tolerância à violência. Consideramos que nenhum país pode ter futuro se não olhar para sua infância e juventude, se não assumir enquanto sociedade uma postura ética de respeito ao outro. Proteger a infância e a juventude deve ser uma prioridade absoluta para que um país siga os caminhos da paz, da justiça social e da equidade, almejando um futuro digno e promissor.

 

[1]https://anistia.org.br/informe/nota-publica-20-anos-da-chacina-da-candelaria-nao-vamos-esquecer/
[2]https://www.hojeemdia.com.br/geral/nunca-mais-atos-lembram-30-anos-da-chacina-da-candelaria-1.971098
[3]https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/07/23/veja-trechos-das-cartas-escritas-por-sobreviventes-da-chacina-da-candelaria-eu-namoro-a-vida-mas-a-morte-me-paquera.ghtml
[4]https://observatorioseguranca.com.br/pele-alvo-a-cada-24-horas-sete-pessoas-foram-mortas/
[5]https://www.bbc.com/portuguese/articles/cwygrk7re45o
[6]https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/acoes-e-programas/atendimento-socioeducativo

 

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES