Segurança no Mundo 17/01/2024

Equador: reflexo ou projeção de um Brasil?

Mais um ciclo de endurecimento penal, construção de grandes presídios e militarização da segurança pública não resolverá a situação a longo prazo. Tais medidas podem, de imediato, restabelecer uma sensação de segurança, mas a qual preço? Quem pagará a conta dessa guerra?

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Olaya Hanashiro

PhD em Ciência Política pela London School of Economics and Political Science-LSE; Consultora Sênior na área de violência e direitos humanos

A desolação e tristeza profunda da sociedade equatoriana e de pessoas que, como eu, levam o Equador consigo é a de quem não reconhece mais o país. Esse tem sido o comentário frequente em conversas dos últimos meses junto à pergunta recorrente de como o país chegou a essa situação de violência. Embora a perplexidade seja generalizada frente à acelerada escalada da violência, é necessário reconhecer como esse caminho já vinha sendo pavimentado há muito tempo. Parte desse processo segue um modelo bem conhecido por nós; outra parte serve de alerta para que o Brasil não permita sua expansão e consolidação em seu território.

Não é de agora a abordagem que segue a lógica punitivista para o enfrentamento ao narcotráfico. Ao longo de décadas, observamos o discurso estadunidense de guerra às drogas ser adotado na América Latina. Seu principal resultado foi a explosão da população carcerária em vários países da região sem que se tenha diminuído a produção de drogas ou seu consumo nos EUA e na Europa. A economia das drogas continua sendo altamente lucrativa, dispondo, cada vez mais, de grande capital para investimento em equipamento e logística e, especialmente, para o estabelecimento de conexões estratégicas com membros do governo e do Estado em suas diferentes esferas. Analisar essas conexões e os demais fatores que as sustentam é fundamental para entender a rápida deterioração da segurança pública no Equador e resistir aos mesmos equívocos.

Um breve retrato do Equador através da política de enfrentamento às drogas

De acordo com os dados do último Censo Penitenciário divulgado pelo governo equatoriano em maio de 2023, a população privada de liberdade (PPL), em 2022 era de 31.321 pessoas, sendo 29.356 homens e 1.965 mulheres. Não há informação sobre a população transgênero. Do total da população carcerária, 83,5% já haviam recebido uma sentença judicial e 16,1% estavam com um processo em andamento.

Entre as pessoas sentenciadas, 7.347 haviam sido acusadas por crimes relacionados ao tráfico de drogas e 3.898 por homicídio. Se entre os homens a porcentagem de crimes relacionados ao tráfico de drogas era de 32,4%, entre as mulheres representava 72,1% dos casos (gráfico 1).

Fonte: Censo Penitenciario 2022, Equador 2023.

Um pouco mais de 10% da população carcerária era composta por pessoas estrangeiras, mas entre as mulheres esse percentual chegava a 17,6% (gráficos 2 e 3). Estrangeiras ou equatorianas, são majoritariamente mulheres que atuam como “mulas”, traficando pequenas quantidades de drogas, e encontram-se na base da pirâmide criminal.

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Censo Penitenciário 2022, Equador 2023.

A superlotação dos presídios no Equador, em 2023, era de 112%. Embora não esteja entre as piores na região (gráfico 4), sua dinâmica mantém todos os vícios e perversidades de um sistema negligenciado e, ao mesmo tempo, incrementado pelo Estado. É o retrato do mercado de trabalho do tráfico de drogas que arregimenta uma mão de obra barata e facilmente substituída, graças à exclusão e desigualdade social que continuam criando jovens sem perspectivas de futuro.

Gráfico 4: Ocupação dos presídios em países da América Latina e Caribe, 2023.

Fonte: World Prison Brief; Statista, 2023.

Os 30 cantões com maiores índices de criminalidade fazem parte de um corredor próximo à infraestrutura portuária do Equador; 12 deles com saída ao mar, como podemos observar no mapa a seguir.

Mapa 1: 30 cantões com os mais altos índices de mortes violentas intencionais, Equador, 2023.

 

A gestação de um Estado inoperante e da violência como regra

A política de enfrentamento às drogas ao longo de cinco décadas explica em grande parte a situação dos presídios e a violência na região, mas não é suficiente para explicar a acentuada escalada da violência no Equador, especialmente nos últimos três anos (gráfico 5), quando os homicídios quase dobraram de um ano ao outro.

Fonte: Ministério de Governo, Estatísticas de Segurança Integral, Equador, dezembro de 2022.

Em uma proporção menor, mas também com crescimento acentuado, observamos o aumento de roubo de carros, motos e a pessoas (gráfico 6). Sabemos que os homicídios não são igualmente distribuídos na sociedade, mas a crescente espetacularização das mortes somada ao aumento de roubos potencializa a percepção de insegurança e aterroriza a população como um todo.

Fonte: Ministério de Governo, Estatísticas de Segurança Integral, Equador, dezembro de 2022.

Por que, então, a tendência de queda nas mortes violentas intencionais se inverte a partir de 2019? Pesquisadores como Jorge Núñez, Richard Snyder, Angélica Durán Martínez e Luís Córdoba Alarcón, observam como Los Choneros, a maior facção criminosa equatoriana, se fortaleceu dentro dos presídios pela relação que seus membros estabeleceram com a inteligência policial.

Em 2014, foram inaugurados grandes complexos penitenciários. Com as novas estruturas e consequente desmobilização das antigas organizações carcerárias ou comitês de internos, foi se estabelecendo uma nova lógica de administração cotidiana da população carcerária. Em 2015, foi criada a Unidade de Inteligência Policial nos presídios, que passaram a ser lugar de coleta de informação sobre o tráfico de drogas. Ou seja, criaram-se mecanismos de produção de informação penitenciária com a finalidade de segurança urbana e de apreensão de drogas ilegais. Para que esses mecanismos funcionassem, foram distribuídos privilégios para quem gerava informações, lógica que passou a predominar na distribuição de grupos de presos em diferentes pavilhões e nas transferências de um presídio a outro, com as negociações sendo realizadas entre os grupos de informantes e a Polícia Nacional. Com os líderes das facções criminosas atuando como informantes para a apreensão de drogas, a disputa por território e mercado das drogas também passou a ser por mais poder junto à polícia. As facções criminosas no Equador também nasceram da lógica da gestão penitenciária, com o agravante de estarem fortemente ligadas ao trabalho de inteligência policial. A lógica punitivista do enfretamento ao narcotráfico e a inteligência policial limitadas à apreensão de drogas não avançaram no sistema financeiro que o sustenta. Perversamente, essa lógica favorece a expansão de seu mercado, demandando uma maior produção de drogas, fornecendo mão de obra barata e aumentando o lucro dos negócios.

Nesse contexto, a explosão da violência que observamos no Equador se dá quando essas facções que controlam o mercado das drogas passam a operar diretamente fora dos presídios e iniciam uma espiral de vingança. Os massacres dentro dos presídios passam a ocorrer também nas periferias de diferentes cidades equatorianas, o que levanta a questão sobre quantos desses informantes conformam o número de vítimas de homicídios no Equador.

A relação do crime organizado com o Estado é central para compreender e enfrentar a violência nos países da América Latina. A intersecção entre criminosos e agentes estatais aumenta conforme um regime político se torna mais autoritário e passa a ser fundamental para a manutenção desse regime. O governo de Rafael Correa (2007-2027) foi responsável por uma série de investimentos, importantes e necessários, nas áreas sociais e mesmo em segurança cidadã, no entanto, o viés autoritário de seu populismo tecnocrata levou ao aumento dessa intersecção. Ao restringir os espaços democráticos e debilitar os mecanismos de prestação de contas e controle do Estado, permitiu uma maior permeabilidade das instituições para o crime organizado e o fortalecimento de relações espúrias entre integrantes dessas organizações e membros do governo e do Estado em diferentes esferas.

Os governos seguintes, Lenín Moreno (2017-2021) e Guillermo Lasso (2021-2023) não foram capazes de restituir os espaços democráticos e ainda promoveram uma grande desinstitucionalização do país. Moreno, além de eliminar o Ministério da Justiça e Direitos Humanos, criando em seu lugar a Secretaria de Direitos Humanos e o Serviço Nacional de Atenção Integral a Pessoas Adultas Privadas de Liberdade e Adolescentes Infratores – SNAI, sem status de Ministério, promoveu uma política de ajuste fiscal com significativas reduções de investimentos em todas as áreas, agravadas pelo impacto social e econômico da pandemia de covid-19.

Ignorando o funcionamento das instituições públicas e acreditando que a solução para a crise econômica e mal funcionamento do aparato estatal é a redução do Estado, Lasso acentuou a debilidade das instituições. Ironicamente, a resposta do governo Lasso diante das ondas de violência foram os decretos de estado de exceção. O presidente banqueiro não foi capaz de apresentar uma política de combate à lavagem de dinheiro, a qual sempre existiu no país e foi favorecida com a dolarização da economia equatoriana em 2000. Lasso é a ilustração perfeita do equívoco de se abordar a gestão pública pela lógica da gestão privada.

A recente onda de violência no Equador, desencadeada por mais um decreto de estado de emergência anunciado pelo governo de Daniel Noboa depois da fuga do líder de Los Choneros, Fito, enfatiza todas as questões aqui levantadas. Fito, que já atuou como “fonte de inteligência” da polícia, é considerado o responsável pelas ações violentas protagonizadas pelo grupo dentro e fora dos presídios, em resposta a tentativas de transferi-lo de presídio, demonstração e disputa de poder. Os últimos eventos levaram o presidente Daniel Noboa a declarar, no último dia 9 de janeiro, “estado de conflito armado interno”. Sem dúvida, a emergência da situação de violência no país demanda uma ação forte por parte do governo, empossado em novembro de 2023. Passado momento de crise aguda, resta saber se Noboa assumirá de vez o modelo de Nayib Bukele, presidente de El Salvador, ou apresentará um plano de segurança pública capaz de romper a espiral de violência em que se encontra o país. Com a eleição para a presidência do Equador no horizonte, caberá à sociedade equatoriana o desafio de sair do estado de estupor e medo para evitar a ilusão de uma solução fácil e contar com um tanto de sorte na esperança de que se estabeleçam propostas políticas de mudança na abordagem do enfrentamento à violência.

A suspensão de garantias constitucionais, já sabemos, favorece uma limpeza social que não afetará a estrutura do crime organizado. Mais um ciclo de endurecimento penal, construção de grandes presídios e militarização da segurança pública não resolverão a situação a longo prazo. Tais medidas podem, de imediato, restabelecer uma sensação de segurança, mas a qual preço? Quem pagará a conta dessa guerra? Noboa já anunciou a proposta de aumentar o imposto de valor agregado (IVA) de 13% para 15%, um tributo que onera de maneira desigual a população de menor renda. E, em situações de conflito armado, são sempre as populações vulneráveis que mais sofrem. A Unicef já denunciou o aumento de 640% da taxa de homicídios de crianças e adolescentes entre 2019 e 2023.

Um alerta para o Brasil

Os acontecimentos recentes no Equador nos trazem muitas lembranças: os ataques do PCC em São Paulo, em maio de 2006; os incêndios de ônibus causados pela milícia no Rio de Janeiro, em outubro de 2023; os massacres em unidades prisionais e disputas por territórios em diferentes estados do país.

As ameaças de golpe à democracia e fragilização das instituições promovidas pela extrema direita no Brasil não são apenas um risco à liberdade e garantia de direitos, mas um sério risco de escalada da criminalidade e, ironicamente, de descontrole estatal.

As consequências do Acordo de Paz firmados na Colômbia em 2016, com a migração de dissidentes da guerrilha e de paramilitares para os grupos de narcotráfico que operam no Equador também dão sinais na escalada da violência da região amazônica. A região, compartilhada pelo Equador e pelo Brasil com os dois países que concentram as maiores produções de cocaína do mundo, Peru e Colômbia, expressam a nova dinâmica do tráfico de drogas, com o estabelecimento de novas conexões e rotas de escoamento de drogas e suprimentos, assim como de financiamento para a expansão dos negócios.

A idiossincrasia de nosso modelo de segurança pública já apresenta desafios enormes. Não podemos agregar problemas ainda maiores com o risco de sermos tragados para um caos sem precedentes. A defesa das instituições democráticas e a promoção de mecanismos de controle externo do Estado, que incluam as instituições policiais e militares, é condição necessária para evitarmos o caminho tomado pelo Equador.

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