Segurança no Mundo 30/08/2023

Equador, na via expressa da violência

Por muitos anos, o Equador conseguiu evitar que seu conflito fronteiriço com o Peru se expandisse e que o conflito interno na Colômbia se infiltrasse em seu território, mas não pôde evitar a recente formação de grupos criminosos e suas conexões internacionais

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Olaya Hanashiro

PhD em Ciência Política pela London School of Economics and Political Science-LSE; Consultora Sênior na área de violência e direitos humanos

O assassinato do candidato à presidência do Equador, Fernando Villavicencio, no último dia 9 de agosto, colocou em evidência, para o resto do continente, a violência política que o país vem enfrentando. Nas eleições locais realizadas em fevereiro, dois candidatos a prefeito, das cidades costeiras de Puerto López e Salinas, foram assassinados; em julho, a vítima foi o prefeito de Manta, outra cidade no litoral; a esses casos se somam assassinatos de lideranças políticas e candidatos à Assembleia Nacional em diferentes partes do país.

A violência política não é alheia à história equatoriana, como indica o historiador Enrique Ayala em seu livro “Los muertos de la política. Crímenes políticos en el Ecuador, 1960-2018”[i]. A instabilidade política tampouco é novidade para um país que, entre 1996 e 2006, ou seja, em 10 anos, teve cinco presidentes. No entanto, a rápida escalada da violência tomou de sobressalto mesmo os analistas mais atentos às dinâmicas da região e aos processos políticos de avanço e retrocesso na área.

A segunda década deste século parecia esboçar a possibilidade de estabilidade política e uma nova abordagem da segurança pública para o país. Rafael Correa assumiu a presidência do Equador (2007-2017) tendo a violência como um dos principais problemas a ser enfrentado. A Constituição aprovada em 2008 ratificou o princípio dos direitos humanos e consolidou o debate sobre a necessidade de mudanças no conceito de segurança e no modelo de funcionamento tanto das Forças Armadas, quanto da Polícia Nacional. O conceito de segurança humana e, especialmente, o de segurança cidadã orientavam o debate na área da segurança pública.

Uma das medidas mais importantes adotadas pela Assembleia Nacional Constituinte, em 2007, foi o indulto a pessoas presas por crimes relacionados às drogas, assim, em 4 de julho de 2008, 17.230 pessoas foram libertadas. Essa medida, juntamente com a construção de grandes centros penitenciários, permitiu resolver o problema da superlotação nesse momento. Outra medida merecedora de destaque foi a política de desarme da população civil, com a promoção da entrega voluntária de armas de fogo, o controle do porte e da fabricação ilegal e a proibição de importação. De acordo com o Ministério de Governo, em 2007, as mortes por arma de fogo representavam 68,2% dos casos de homicídio no país, tendo chegado, em 2005, a representar 80,8% dos casos. Em 2018, esse percentual havia caído para 46,4%.

A superlotação dos presídios, até 2007, superava em mais de 30% a capacidade real do sistema penitenciário. O aumento do encarceramento foi resultado da Lei de Substâncias Estupefacientes e Psicotrópicas do Equador, de 1991. A aplicação da Lei 108, como ficou conhecida, não refletia uma necessidade do país e, sim, uma pressão dos EUA para fortalecer sua política de guerra às drogas na região, pressão que só aumentou com o lançamento do “Plan Colombia” no ano 2000. Nesse período, só para se ter uma ideia do tamanho do impacto da política dos EUA na segurança pública equatoriana, o orçamento anual da Direção Nacional Antinarcóticos-DNA, incluindo o pagamento de gastos fixos, era de apenas USD 700.000, enquanto a assistência estadunidense direta à polícia e, especialmente, canalizada para a DNA, girava em torno de USD 8.000.000, apenas para atividades operativas, sem mencionar outras formas de assistência relacionadas ao combate ao tráfico de drogas.

Nesse contexto, as propostas iniciais de uma política de segurança pública orientada pela garantia dos direitos humanos e tendo como eixos prioritários políticas de prevenção à violência e de profissionalização da instituição policial foram perdendo espaço para uma política baseada em operações policiais de apreensão de drogas e encarceramento. Depois da consulta popular de 2011, que tinha entre seus vários objetivos o tema da reforma judicial e do uso da prisão preventiva, a abordagem punitivista ganhou um forte impulso. Com a promulgação do Código Orgânico Integral Penal-COIP, em 2014, e da Lei Orgânica de Prevenção Integral do Fenômeno Socioeconômico de Drogas, em 2015, houve um endurecimento das penas e a criação de novos tipos penais. Incrementou-se a aplicação da prisão preventiva, figura sob a qual chegaram a estar quase 40% das pessoas privadas de liberdade.

Com o objetivo de enfrentar os problemas da superlotação, mas sobretudo por uma lógica punitivista, em 2013, começaram a ser construídos três novos presídios, na província costeira de Guayas e nas províncias serranas de Cotopaxi e Azuay, considerados de segurança máxima. A Penitenciária do Litoral também passou por um grande processo de reforma e, como resultado, a capacidade prisional total do país mais que triplicou. Essa política punitivista se concentrou em altos investimentos públicos, em grande parte necessários pela falta de investimento de governos anteriores, mas insuficientes como política de segurança pública e, ao longo do tempo, insustentáveis do ponto de vista financeiro. Como consequência, em apenas dois anos, a superlotação voltaria a ser um problema.

Em 2019, a população carcerária chegou a quase 40.000 presos, equivalente a uma taxa de 351,3 presos por 100mil habitantes. Em 2021, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos-CIDH fez uma visita ao Equador para tratar do tema prisional. Como indica em seu relatório[ii], na data de 29 de novembro de 2021, havia um total de 36.599 pessoas privadas de liberdade distribuídas em 36 centros de detenção, sendo 93,46% da população carcerária do sexo masculino e 6,54% do sexo feminino; 44,24% tinham entre 18 e 30 anos; em relação ao motivo pelo qual se encontravam presas, os principais eram delitos relacionados às drogas (28,19%), delitos contra a propriedade (26,17%), delitos contra a integridade sexual e reprodutiva (16,18%), delitos contra a inviolabilidade da vida (13,47%), e delitos contra as pessoas (4,36%). Nessa mesma data, o número de agentes prisionais era de 1.632 funcionários divididos em distintos turnos, cada um com 600 agentes, ou seja, havia um agente para cerca de 62 presos, podendo o número de presos por funcionários ser ainda maior nos chamados “megapresídios”.

O censo penitenciário de 2022 registrou 31.319 pessoas privadas de liberdade, indicando uma diminuição da população carcerária. No entanto, sabemos que a simples redução do número de pessoas presas, sem a implementação de uma ampla política penitenciária, não é capaz de produzir um impacto na dinâmica dos presídios.

Em 2018, o governo de Lenin Moreno (2017-2021) promoveu uma reforma administrativa que eliminou o Ministério da Justiça e Direitos Humanos e, em seu lugar, criou a Secretaria de Direitos Humanos e o Serviço Nacional de Atenção Integral a Pessoas Adultas Privadas de Liberdade e Adolescentes Infratores – SNAI, sem status de Ministério. Essa reforma, juntamente com a redução orçamentária, iniciada a partir de 2017 e agravada com o impacto econômico e social da pandemia de covid-19, acelerou o processo de desinstitucionalização do sistema penitenciário. A política de austeridade fiscal comprometeu a administração e controle de uma infraestrutura penitenciária extremamente custosa. Enquanto a situação carcerária piorava, o orçamento destinado ao sistema penitenciário diminuía a cada ano. O relatório da CIDH indica que, em 2017, esse orçamento foi de USD 153.000.000; em 2018, já havia sido reduzido a USD 90.000.000 e, em 2021, foi de apenas USD 54.000.000.

A partir de 2018, o enfrentamento de facções criminosas dentro dos presídios se intensificou e, em 2021, as mortes violentas dispararam e assombraram pela brutalidade apresentada na forma de mutilações e decapitações. Nesse ano, 316 pessoas morreram em oito eventos violentos nas prisões, sendo que ao menos 122 morreram em um único evento na Penitenciária do Litoral. Calcula-se que a taxa de mortes nas prisões tenha ultrapassado o índice de 83 por 10 mil presos.

A falta de controle efetivo dos presídios por parte do Estado significou a prevalência de um sistema de “autogoverno” dominado por grupos do crime organizado. Em 2018, a superlotação já superava em cerca de 40% a capacidade do sistema carcerário, resultando, em 2019, em uma crise penitenciária sem precedentes no país.

Ao lado de problemas já conhecidos do sistema penitenciário equatoriano, os quais propiciam a autogestão dos presídios com altos custos de vida para os internos – como falta de uma política penitenciária voltada para a reabilitação social; violações de direitos humanos; falta de agentes prisionais e de profissionalização dos funcionários; logística inadequada; estrutura precária e insalubre dos presídios; corrupção; e, superlotação – a estrutura penitenciária inaugurada com os “megapresídios” e a nova dinâmica do tráfico de drogas na região são fundamentais para entender como o Equador saiu rapidamente da posição de um dos países mais seguros do continente para uma realidade alarmante de violência que já chegou às diferentes instâncias de poder.

O Acordo de Paz, firmado entre o governo colombiano e os comandos das Forças Revolucionárias da Colômbia-FARC, em 2016, pôs fim a mais de 50 anos de conflito armado no país. No entanto, um efeito não previsto ou, pelo menos, não em sua magnitude, foi a formação de novos grupos criminosos constituídos por dissidentes da guerrilha que não aceitaram o acordo. O surgimento desses grupos levou à expansão do tráfico de drogas para dentro do Equador e gerou uma violenta disputa por território.

Ao longo dos anos, as prisões relacionadas ao tráfico de drogas de pessoas de diferentes nacionalidades facilitou a organização de grupos locais e sua inserção nas redes regionais e internacionais de tráfico. Esses grupos passaram a se ocupar do armazenamento, distribuição e venda de drogas para diferentes partes do mundo. O Equador nunca foi um produtor de coca ou abrigo para os laboratórios de produção de drogas. Historicamente, casos de lavagem de dinheiro e o uso de cidades fronteiriças com a Colômbia como zona de descanso e abastecimento da guerrilha eram comuns, mas não ditavam a dinâmica da violência e da criminalidade no país. Por muitos anos, o Equador conseguiu evitar que seu conflito fronteiriço com o Peru se expandisse e que o conflito interno na Colômbia se infiltrasse em seu território, mas não pôde evitar a recente formação de grupos criminosos e suas conexões internacionais. Suas fronteiras com Peru e Colômbia e uma grande zona portuária, com precária fiscalização, fizeram do Equador uma das principais rotas para o envio de drogas à Europa e aos EUA, estabelecendo importantes conexões com cartéis mexicanos e máfias do leste europeu.

Além das duas maiores facções criminosas que dominam as penitenciárias equatorianas, os Choneros e os Lobos, já foram identificadas, pelo menos, outras oito facções de menor tamanho, entre elas, os Triguerones, os Latin Kings e a Nueva Generación. Qualquer disputa social ou criminal acaba passando pela intermediação desses grupos de dentro dos presídios. Estima-se que só os Choneros teriam chegado a 12.000 membros. O constante entre e sai de pessoas, novas ou reincidentes, facilita o recrutamento de indivíduos e o domínio territorial extramuros. Com o abandono do sistema penitenciário e a continuidade da política de combate às drogas baseada no endurecimento penal e no encarceramento massivo, os presídios passaram a reproduzir os conflitos extramuros e, simultaneamente, tornaram-se catalisadores do aumento da violência fora dos presídios.

Entre 2009 e 2017, o país havia conseguido uma redução de quase 75% dos homicídios, saindo de uma taxa de 18,7 homicídios por 100 mil habitantes para uma taxa de 5,7. Depois do Chile, o Equador era o país com o menor índice de homicídios da região. A partir de 2019, os homicídios voltaram a aumentar e, em 2021, a taxa já chegava a 14,6. Em 2022, o Ministério de Governo registrou o ano mais violento da história do país, com mais de 4.600 mortes violentas intencionais e uma taxa de 25 homicídios por 100 mil habitantes. O litoral, onde ocorre a logística de recebimento e distribuição das drogas, concentra o maior número de homicídios e as instituições penitenciárias mais violentas. A província de Guayas, onde se encontra o principal porto equatoriano, sozinha, responde por 42% dos homicídios no país, seguida por Esmeraldas (11,18%) e Manabí (10,15%). 2023 deve fechar com índices ainda mais altos, tornando o Equador, atualmente, o país da América Latina com o maior crescimento de homicídios.  O mais alarmante no caso equatoriano é justamente a velocidade com a qual se deu a desinstitucionalização do sistema penitenciário e a escalada da violência à esfera política.

Apesar dos enormes investimentos nas áreas sociais, o populismo tecnocrata de Rafael Correa, como define o cientista político Carlos de La Torre, limitou os processos participativos e de contestação no país, tendo como resultado o enfraquecimento das instituições democráticas. Em 2019 também estoura uma grande crise social no país, tendo como estopim o aumento do preço dos combustíveis. Lenin Moreno, que chegou à presidência com o apoio de Rafael Correa, diante das denúncias de corrupção envolvendo o ex-presidente, foi se afastando até uma total ruptura e guinada à direita. Frente a um cenário econômico cada vez mais desfavorável, como parte de um acordo firmado com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para obtenção de empréstimo, Moreno baixa um decreto para retirar o subsídio estatal aos combustíveis. O impacto econômico dessa medida levou milhares de indígenas da região amazônica e de outras cidades serranas a marcharem para Quito, fazendo o presidente transferir, temporariamente, a capital para Guayaquil e declarar estado de exceção. Mais além da questão econômica, a insatisfação social já expressava o deterioramento generalizado das instituições políticas do Equador e a dificuldade de se voltar a estabelecer espaços democráticos de discussão.

A crise econômica e a insustentabilidade das políticas sociais adotadas nos anos anteriores foram agravadas pela falta de capacidade do governo em lidar com a pandemia de Covid-19. Moreno terminou seu mandato com apenas 7% de aprovação e a eleição de 2020 levou à presidência o banqueiro por ele derrotado na eleição anterior. Confiante em sua imagem de gestor de sucesso – como se administração pública e privada tivessem a mesma lógica, mecanismos e objetivos-, Guillermo Lasso assume a presidência do Equador defendendo medidas neoliberais e de maior austeridade.

Em 2022, as manifestações voltaram às ruas e uma greve geral foi decretada. A resposta de Lasso foi o endurecimento do controle social através de decretos de estado de exceção e da presença das Forças Armadas nas operações de policiamento. A mesma resposta dada em momentos críticos do aumento da criminalidade e da violência, como se o “toque de queda” (toque de recolher) fosse capaz de restaurar algum tipo de segurança. Lasso decretou estado de exceção no país ou em províncias específicas em, pelo menos, 18 ocasiões. Com exceção do decreto de 19 de março deste ano, devido a “desastre natural”, todos os demais estão relacionados a questões de segurança sob a figura de “grave comoção interna” (art. 164 da Constituição de 2008). O último decreto, ainda em vigor, se deu depois do assassinato de Villavicencio. Ao mesmo tempo em que as medidas de controle social foram aumentando, em abril deste ano, o governo decidiu modificar o decreto referente a posse e porte de armas para permitir seu uso para defesa pessoal. As medidas adotadas por Lasso tiveram apenas o efeito de aumentar a percepção de insegurança da população e elevar sua rejeição para mais de 80%.

Envolto em denúncias de corrupção e sem apoio político, em maio, o presidente Lasso dissolveu a Assembleia Nacional e convocou eleições extraordinárias para o Legislativo e o Executivo, através do mecanismo da “muerte cruzada”, previsto na Constituição de 2008, mas nunca usado anteriormente. Passado o primeiro turno das eleições presidenciais, seguem as incertezas e o choque provocado pelo assassinato de Villavicencio.

Pouco se conhece sobre a proposta para a segurança pública dos candidatos que chegam ao segundo turno, Luisa González – advogada e ex-assembleísta, apoiada pelo ex-presidente Rafael Correa- e Daniel Noboa – empresário bilionário e ex-assembleísta, filho de Álvaro Noboa, o maior exportador de banana do país e cinco vezes candidato à presidência. Se podemos encontrar algum alento, neste momento, é o fato de que as propostas de “mano dura” no combate à violência e à criminalidade, como as apresentadas pelo candidato Jan Topic, seguidor do presidente salvadorenho Nayib Bukele, foram rechaçadas pelos equatorianos.  Resta saber o grau de comprometimento dos candidatos com o fortalecimento institucional e os espaços democráticos de ação e prestação de contas necessários para a legitimidade e sucesso de qualquer política pública.

 

[i] Publicado pela Universidade Andina Simón Bolívar, em 2019.

[ii] CIDH (2021). Personas privadas de libertad en Ecuador. https://bit.ly/3nxKlJw.

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