Múltiplas Vozes 26/07/2023

Entre celas e muros: um novo e necessário olhar sobre o encarceramento

(Re)conhecer as complexidades que compõem a realidade das instituições penais parece ser um primeiro passo para estudos, diálogos e propostas de reformas necessárias, que já não podem esperar dentro de uma democracia

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Ana Carolina da Luz Proença

Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS, bolsista CAPES, e mestra em Direito e Sociedade pela Universidade La Salle (Canoas-RS), integrante do GPESC – Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança Pública e Administração da Justiça Penal.

Não é de hoje que pesquisas com olhares voltados ao encarceramento, aos efeitos e condições das prisões, sobre a (in)eficácia na aplicação da LEP – Lei de Execução Penal – tomam um grande espaço de discussões. A prisão é um terreno fértil para estudos, a complexidade e diversidade do ambiente permitem explorar diversos dados e assuntos de grande relevância.

Contudo, ainda que haja uma grande presença de pesquisa em diversos aspectos discutindo a prisão, são imperiosas a reflexão e o reconhecimento de que esse ambiente caótico é composto por inúmeras pessoas além dos apenados, que, de alguma ou de várias formas, são atingidos pelas mazelas do ambiente. Dentre eles: servidores e visitantes.

A prisão abriga não só os apenados, agentes, mas, também, várias pessoas (em sua grande maioria mulheres) que visitam seus entes durante o período em que estão presos, ainda que de maneira provisória. A conjuntura das prisões brasileiras é, em sua maioria, precária, contribuindo para inúmeras violações de direitos humanos e fundamentais, de titularidade tanto dos encarcerados quanto de seu grupo familiar. O que já foi discutido e reconhecido na ADPF 347.

Tempos difíceis e inquietantes, como os atuais, intensificam as ameaças de subsistência que muitas vezes já são precárias, para classes mais populares e oprimidas. Manter a dignidade e segurança humana com expectativas melhores de vida é um grande desafio para determinados grupos de pessoas.

O fato de indivíduos estarem privados de sua liberdade por conta de delitos cometidos não justifica a atuação do Estado em ofertar um tratamento desumano, muito menos representa uma preocupação unitária, não compadecendo com a dor da vítima que sofreu a conduta delituosa praticada. Tais omissões, que não garantem as mínimas condições para os corpos que ali estão, configuram a ineficiência estrutural da prisão. Não se pune crime cometendo outros crimes. Mas a intenção aqui é ir além.

Pesquisas com um olhar voltado para os efeitos colaterais da prisão não são novidade em países como Estados Unidos e Portugal, por exemplo. Tal delimitação é importante para demonstrar, inclusive, como o encarceramento contribui para o empobrecimento de famílias, abandono escolar de filhos(as) de apenados(as), estigmatização dos familiares que muitas vezes são tratados como criminosos sem nem mesmo terem respondido algum processo criminal.

Dados atuais do SISDEPEN apontam que o número de presos em celas físicas nos presídios do país é de 642.638. Se forem contabilizados dois familiares para cada apenado privado de liberdade, teremos cerca de 1.285.276 pessoas que sofrem e são afetadas de forma direta pelos efeitos do encarceramento. O que deixa explícito que a pena não é só do indivíduo que cometeu, supostamente, o ato ilícito.

Contudo, um dos principais problemas é que tal realidade não é visibilizada como deveria, sendo pouco debatida, fazendo dos familiares pessoas esquecidas, inclusive, pelas políticas públicas, dificultando o fortalecimento dessas pessoas até mesmo para reconstruir a sua vida. Se faz primordial lançar luzes sobre esses problemas de maneira emergente e urgente. No contexto brasileiro, raras iniciativas são lançadas. No entanto, não se pode deixar passar que, de maneira inovadora, a UFMG criou, no ano de 2022, um curso gratuito chamado “Cadê meus Direitos?” de orientação para familiares de detentos a reivindicarem direitos. A formação ensina sobre o sistema de justiça criminal, e trata de assuntos como remição da pena, direitos humanos, dentre outros (O TEMPO, 2022).

Com a prisão de um familiar, inúmeras visitantes ficaram mais sobrecarregadas em razão da reorganização da vida doméstica e pública. Suas vidas são reorganizadas de acordo com dias e horários de visitas. O orçamento familiar já não será mais o mesmo em decorrências dos gastos de deslocamento e necessidades dos itens dentro da sacola que cada preso(a)  receberá. Tudo de acordo com as normas e portarias que cada Estado publica para o ingresso de visitantes nas casas prisionais.

Passam a interagir com uma série de instituições que até o momento eram desconhecidas para garantir a própria vida de quem está entre as celas e os muros. Assim, a superação das barreiras (físicas, simbólicas e institucionais) de acesso a direitos demanda inovações, como a articulação em rede de seus pequenos grupos de apoio. O que se torna fundamental para um apoio moral, material e emocional entre si e na ausência de amparo por parte do estado.

No Rio Grande do Sul, por exemplo, diante do período de pandemia causada pela COVID–19, o cenário de incertezas, dor, ausência de visitação, dentre outras situações, colaborou com a criação de um coletivo organizado por familiares de presos. A Frente dos Coletivos Carcerários se formou com o intuito de reivindicar de modo mais efetivo os direitos que estão garantidos na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984), bem como a necessidade de tratar os próprios direitos das famílias.

O fardo de ser familiar de um preso, o dia de visita, o tratamento ofertado pelas casas prisionais para as famílias, o significado do dia de visita e as interações entre agentes penitenciários/policiais presos e familiares, carece de mais discussões e foco para que seja possível contribuir positivamente com a complexidade do contexto. Os efeitos da prisão ultrapassam as celas e galerias. Começam pela organização para o dia de visita, filas, salas de revistas.

(Re)conhecer as complexidades que compõem essa realidade das instituições penais parece ser um primeiro passo para estudos, diálogos e propostas de reformas necessárias, que já não podem esperar dentro de uma democracia.

 

Referências:

CHESNEY-LIND, Meda; MAUER, Marc (Ed.). Invisible punishment: The collateral consequences of mass imprisonment. New Press, The, 2003.

GRANJA, Rafaela. Beyond prison walls: The experiences of prisoners’ relatives and meanings associated with imprisonment. Probation Journal, v. 63, n. 3, p. 273-292, 2016

DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO, (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, SISDEPEN, disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMTQ2ZDc4NDAtODE5OS00ODZmLThlYTEtYzI4YTk0MTc2MzJkIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9&pageName=ReportSection045531d3591996c70bde. Acesso em: 10 de jul. de 2023.

Curso gratuito da UFMG orienta familiares de detentos a reivindicarem direitos. O TEMPO, 2022. Disponível em: https://www.otempo.com.br/brasil/curso-gratuito-da-ufmg-orienta-familiares-de-detentos-a-reivindicarem-direitos-1.2773428. Acesso em: 10 de jul. de 2023.

LAGO, Natália Bouças. Jornadas de visita e de luta: tensões, relações e movimentos de familiares nos arredores da prisão. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. 2019.

RIBEIRO, Ludmila; MARTINO, Natalia; DUARTE, Thais Lemos. Antes das grades: perfis e dinâmicas criminais de mulheres presas em Minas Gerais. Sociedade e Estado, v. 36, p. 639-665, 2021.

PROENÇA, Ana Carolina da Luz. Entre celas e muros: a luta das visitantes do sistema prisional para garantir suas relações afetivas e a dignidade de seus familiares. 1a. ed., Curitiba: CRV, 2022.

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