Múltiplas Vozes 07/02/2024

Enfrentamento policial do feminicídio: entre tragédias familiares e a criminalidade em geral

As investigações policiais podem contribuir para a compreensão do feminicídio ao inseri-lo em padrões análogos aos de outros crimes, como mortes violentas intencionais, sobretudo no que toca ao conhecimento do perfil dos autores e de seus comportamentos criminais

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil do Distrito Federal. Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública

No dia 31 de dezembro de 2023, uma mulher foi morta a facadas por seu ex-parceiro, numa área periférica do Distrito Federal. O autor tinha histórico violento. A vítima já tinha feito registros anteriores de agressões. Ela se somou a outras 32 vítimas de feminicídio que ocorreram na Capital Federal naquele ano. No Brasil, desde 2015, quando a qualificadora feminicídio foi instituída, os números absolutos passaram de 449 ocorrências, em 2015, para 1.437 ocorrências, em 2022; segundo dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública[1]. Esses números, embora choquem, muitas vezes são colocados em segundo plano pelas forças de segurança pública, visto que comumente são tratados apenas como imprevisíveis tragédias familiares. Todavia, a análise dos registros de feminicídios sugere que eles não são eventos aleatórios e isolados, mas também parte da seara criminal.

Nesse sentido, dos 33 casos de feminicídio ocorridos em 2023 no Distrito Federal, em 23 deles os autores já possuíam ocorrências criminais anteriores, segundo dados da Polícia Civil do Distrito Federal. Ademais, desses casos, em oito deles os autores possuíam entre cinco e nove ocorrências, e cinco deles tinham mais de 10 ocorrências. Em geral, as ocorrências estavam relacionadas à violência doméstica, com as próprias vítimas do feminicídio ou com outras pessoas. Contudo, há incidências de outros crimes, como furtos, roubos, tráfico de drogas, porte ilegal de arma, embriaguez ao volante. Mesmo que em boa parte das ocorrências os envolvidos ainda não tenham condenações judiciais, ressalta-se que aproximadamente 70% dos autores dos feminicídios cometidos na Capital Federal possuíam históricos de situações de violências domésticas e, inclusive, de outros crimes. Nota-se, portanto, que a maioria dos autores de feminicídio é composta de envolvidos já conhecidos das polícias. Então por que as corporações não conseguem atuar mais proativamente no enfrentamento ao feminicídio?

É fato. Em geral, casos de feminicídio decorrem de agressões oriundas dos próprios lares dos envolvidos, e submersos em relações violentas que não estão no espaço público. Nesse contexto, a atuação das corporações de segurança pública depende, em grande parte, de manifestações das vítimas ou de pessoas próximas. Assim, em casos de violências domésticas comunicados aos serviços de emergência policial, as corporações procedem o atendimento. Ou ainda, quando as vítimas se dirigem ou são conduzidas pessoalmente às delegacias para relatar a violência, são formalizados boletins de ocorrências, providenciadas medidas protetivas, gerados procedimentos investigativos. Em situações nas quais os autores são identificados e presos ou em flagrantes, as polícias realizam os procedimentos necessários para o encaminhamento ao Poder Judiciário. Dessa forma, as polícias agem basicamente de forma repressiva.

Por outro lado, nota-se também que têm sido desenvolvidos nas corporações alguns mecanismos preventivos, por exemplo: patrulhas Maria da Penha, operações para cumprimento de mandados de prisão de autores de violência doméstica, programas de acionamento imediato das polícias para atendimento às vítimas em situação de risco extremo.  No entanto, embora casos de violência doméstica e, sobretudo, feminicídio, necessitem da atuação policial, em geral, as corporações agem quando provocadas, ou seja, quando as agressões já são de conhecimento das autoridades. Portanto, não são fáceis ações policiais preventivas para obstar as várias formas de violência doméstica direcionadas às mulheres que não são relatadas ou não se manifestaram.

De todo modo, o enfrentamento do feminicídio tem sido um dilema para as forças da segurança pública, pois ainda há incongruências e preconceitos na abordagem desse fenômeno do meio policial. Ora, mesmo os casos de feminicídio impactando nas estatísticas da violência, as polícias não os encaram necessariamente como outras naturezas criminais sujeitas a padrões e rotinas, por exemplo: roubos, tráficos de drogas, latrocínio, homicídios decorrentes de outras atividades ilícitas. Consequentemente, a despeito da gravidade das violências domésticas e dos feminicídios, ainda há no imaginário e na prática de boa parte das corporações a concepção de que esses eventos são tão-somente problemas de desajustes sociais e não necessariamente casos do campo da criminalidade que exigem mais atuação do trabalho policial.

É fato que as violências domésticas, bem como o feminicídio, são fenômenos com causalidades múltiplas e complexas, muitas das quais ultrapassam a alçada das polícias. Com efeito, não são as forças de segurança pública que irão, exclusivamente, debelar os feminicídios.  Todavia, o aprofundamento dos casos de feminicídio, em especial de seus autores, tende a demonstrar que esses dramas podem não ser somente casos de família, porém também situações embrenhadas com outras criminalidades. Ou seja, os feminicídios podem não ser exclusivamente eventos isolados, contudo situações possíveis dentro das circunstâncias criminais em que se inserem seus envolvidos, sobretudo os autores.

A breve amostra de casos feminicídio no Distrito Federal em 2023 sugere que violências familiares e contra as mulheres também são partes de contextos criminais. Ressalta-se que, daquela amostra, a maioria dos autores envolvidos possuía histórico de violências diversas catalogado em registros policiais. Como é observado no feminicídio, em geral, ele é parte da evolução de outras violências, como ameaças, injúrias, lesões. Entretanto, além disso, o que se apresenta é que autores de feminicídio podem também estar vinculados a outras atividades criminais, o que parece potencializar o cometimento de violências domésticas, inclusive do próprio feminicídio. Ou seja, há evidências de que os casos de feminicídio podem estar imersos noutras dinâmicas criminais estabelecidas no espaço, no território e nas relações dos envolvidos.

Por certo, o feminicídio é um crime passional, mas o que o detalhamento dos dados indica é que também pode estar entranhado com outras circunstâncias criminais. Neste caso, investigações policiais podem contribuir para a compreensão do feminicídio ao inseri-lo em padrões análogos aos de outros crimes, como mortes violentas intencionais, sobretudo no que refere ao conhecimento do perfil dos autores e de seus comportamentos criminais. Afinal, conforme amostra dos casos de 2023 no Distrito Federal, há disposição de o feminicídio não ser fenômeno exclusivo de um ciclo de violência intrafamiliar, porém parte ou integrado a outras formas de conflitualidades. Destarte, nestes casos, o enfrentamento policial poderia não só contar e investigar os crimes, mas ofertar alternativas mais ativas para prevenção do feminicídio.

[1] Vide anuários 2017 e 2023.

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