Emily e Rebeca, símbolos de uma realidade preocupante: a letalidade policial que avançou em 16 estados
Na guerra urbana em que a letalidade se manifesta, todos perdemos. Emily e Rebecca, vítimas inocentes, jamais terão suas vidas reconstituídas, mas precisam ser lembradas
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A letalidade policial ganhou esta semana manchetes em função do que revelaram os números relativos ao primeiro semestre de 2023. Entre os 26 estados e o Distrito Federal, o primeiro semestre do ano de 2023, no que diz respeito à letalidade policial, revela um aumento em 16 unidades da federação, em comparação com o mesmo período do ano passado.
As mortes que envolvem policiais nestas unidades estão em descompasso com a média nacional, que caiu 3,7%. Devemos comemorar essa queda, mas também alertar para o aumento que se deu em um número majoritário entre os estados. Os números foram tabulados e divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Entre os estados nos quais a letalidade aumentou, destaque para Mato Grosso, com 340%, e Distrito Federal, com 114,3%, embora neste último os números absolutos sejam baixos – 7 em 2022 contra 15 em 2023. Em São Paulo, onde as mortes causadas por agentes subiram 8,3%, o número foi destoante em relação à média da região Sudeste, que caiu 8,7%. Importante salientar que a Operação Escudo, que contabilizou 28 mortes, ficou fora dessa estatística, já que ocorreu em julho.
Entre os estados onde a letalidade policial apresentou as maiores reduções, estão o Maranhão (-48,8%), Paraná (-40,6%) e Amazonas (-38,8%). Bahia e Rio de Janeiro, estados que em 2022 haviam liderado essa estatística, também apresentaram reduções. O Rio de Janeiro, em particular, apresentou redução de 12%, mas com números absolutos ainda muito elevados: foram 649 mortes. Na análise dos últimos sete anos, a região metropolitana da capital teve três chacinas policiais por mês. Entre 1º de agosto de 2016 e 31 de julho de 2023, foram mortas 1.137 pessoas em 283 operações policiais (considerando-se aquelas com três ou mais vítimas).
Quanto à perícia, sabemos que sempre estará presente nas apurações que envolvem esse tipo de evento. Para os peritos criminais, trata-se de um tipo de ocorrência dos mais desafiadores. A primeira dificuldade reside na quase impossibilidade de lidar com locais de crime preservados. Ações anteriores à chegada das equipes de perícia muitas vezes resultam na retirada de vestígios da cena, no socorro a vítimas já mortas, que, ao serem removidas do local, “enfraquecem” o alcance que poderia ser atingido quando se fala em restabelecer a dinâmica do fato, demonstrando como a sequência de eventos se desenvolveu até culminar com os resultados finais, quase sempre trágicos.
Todos os exames que podem ser desencadeados pela perícia de local de crime após o recolhimento de vestígios incluem diversas outras modalidades de perícia, dentre as quais exames balísticos, exames de materiais biológicos, exames de DNA, exames em objetos, exames em dispositivos eletrônicos, exames em imagens de câmeras. Outros exames complementares também podem ser requisitados, como os exames de reprodução simulada, também conduzidos pelos peritos.
Dessa forma, a importância da perícia nas apurações desse tipo de ocorrência está demonstrada. E aqui importa mencionar um fato relevante: das 27 unidades da federação, os órgãos de perícia oficial ainda estão subordinados às Polícias Civis em sete deles, incluindo o Rio de Janeiro, onde, para piorar, a superintendência de Polícia Científica sequer é ocupada por um perito oficial. Estes fatos sinalizam para um preocupante viés institucional. Como preconizava um importante perito criminal há muito tempo: “Quem investiga não deveria realizar a perícia!”
A escolha desse tema nesta semana passa por um caso em especial: o Caso Emily e Rebecca, duas meninas, de 4 e 7 anos, que morreram exatamente há três anos, no dia 4 de dezembro de 2020, uma sexta-feira. Elas foram baleadas na cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, atingidas por um único disparo de fuzil cujo projétil atingiu a cabeça de Emily e em seguida o tórax de Rebeca. Uma equipe policial do 15º Batalhão da PM, que estava em patrulhamento na região, foi considerada suspeita pela origem do disparo. Contrariando inúmeras evidências, o inquérito foi arquivado quanto à participação dos policiais e o Ministério Público acabou por indiciar de forma genérica os chefes do tráfico de drogas da região. Não havia nenhum relato de troca de tiros. Testemunhas apontaram a origem do disparo à viatura. Um laudo em especial, o de reprodução simulada, que foi usado para sustentar a versão da polícia, tem sido objeto de críticas e pode ser revisto por iniciativa da Defensoria Pública.
Na guerra urbana em que a letalidade se manifesta, todos perdemos. Emily e Rebecca, vítimas inocentes, jamais terão suas vidas reconstituídas, mas precisam ser lembradas.
PS: Na mesma data de 4 de dezembro se comemora o Dia Nacional do Perito Criminal.