Em nome do pai, do filho e dos espíritos jurídicos – o vale tudo contra o aborto legal
Com coragem, recuperemos a lucidez do debate como mantra e sigamos em frente, alinhados, ao menos, em homenagem aos nossos mínimos patamares civilizatórios: criança não é mãe, e estuprador não é pai
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Nem bem iniciamos 2025, já foi declarada reaberta a temporada contrária ao aborto legal. Parece mesmo que o ano passado, com as investidas do Legislativo, a complacência do Judiciário e inércia do Executivo, deixou assanhada a turma que, em nome da legalidade, vai ganhando musculatura para o ataque a direitos. Só aqui neste espaço, antes falamos da PEC 164/2012 (Desde a concepção, para quem mesmo?) e do PL 1904/24 (Sem dourar a pílula – meninas negras vítimas de estupro e o PL antiborto) que tentaram desvirtuar a urgência do debate sobre a violência sexual que vitima no Brasil, majoritariamente, meninas negras.
A normativa da vez é a Resolução 258, de 23 de dezembro de 2024. O contrassenso é que esse regulamento traz diretrizes para proteger crianças e adolescentes vítimas de violência sexual – ou seja, estamos falando de um movimento de garantia de direitos. Antes que a desinformação tome conta, vale conferir a literalidade da previsão normativa: “A interrupção legal da gestação é um direito humano de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, estando diretamente relacionado à proteção de seus direitos à saúde, à vida e à integridade física e psicológica, bem como ao pleno exercício de sua cidadania”.
Estabelecida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, no entanto, a resolução 258/24 foi publicamente atacada por setores progressistas e conservadores, chegou a ser judicialmente suspensa, no final de 2024 e, até o momento em que o presente texto é publicado, encontra-se sustentada por uma cautelar, do TRF da 1ª Região, datada de 06/01/2025.
Estamos falando de 37 artigos que traduzem, em linguagem jurídica, os contornos da proteção à infância e juventude, face à irreparável marca da violência sexual. O que não conseguimos impedir de acontecer nessa fase peculiar de desenvolvimento humano, temos o dever, enquanto coletividade, de mitigar, restabelecendo a rota de proteção e cuidados necessários e inerentes à condição de criança e adolescente.
Contudo, isso facilmente se perdeu, no esvaziamento da discussão que faz parecer, tão só, que estamos frente a uma questão de inadequação normativa. Tudo se passa como se estivéssemos diante de um trivial acontecimento na vida de crianças e adolescentes – afinal, ter a infância interrompida e violentada por estupro, do que se pode ainda ter uma gravidez, é algo que integra os sonhos e projetos das meninas negras brasileiras, não é mesmo?
Em nome da família, argumentou-se que a autoridade derivada do poder familiar seria atropelada pela resolução. Em nome da defesa da invasão de competência, argumentou-se que a legalidade não foi observada.
Ora, com coragem, recuperemos a lucidez do debate como mantra e sigamos em frente, alinhados, ao menos, em homenagem aos nossos mínimos patamares civilizatórios: criança não é mãe, e estuprador não é pai. Não há o que titubear. Violência sexual precisa ser enfrentada.
Vivemos tempos em que dizer o óbvio se faz ainda mais necessário. Aqui, inverter a ordem não altera a atrocidade – gravidez por estupro não se confunde com defesa da vida.