Aiala Colares Oliveira Couto
Nascido no quilombo de Pitimandeua, no Pará, é geógrafo com doutorado em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental, professor da UEPA, onde coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, e está vinculado à Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O desmatamento é a porta de entrada para outras drogas. Grandes desmatadores do agronegócio insustentável e o crime organizado – contrabando de madeira e de animais silvestres, pirataria de patentes, narcotráfico, trabalho análogo à escravidão, exploração sexual, milícias, e mineração ilegal –avançam Amazônia adentro, sem que nada os detenha. A cocaína tem acelerado essa destruição. Desde 2016, o Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, ficando atrás somente dos EUA e à frente da Europa, segundo o Escritório das Nações Unidas Sobre Crime Global. O país não é só rota, mas um potencial mercado consumidor.
Segundo os levantamentos do Instituto Mãe Crioula, cerca de 40 comunidades remanescentes quilombolas no estado do Pará denunciaram a presença em seus territórios de grupos criminosos nos últimos cinco anos, a maioria deles ligados a uma facção do Rio de Janeiro. A situação se agravou nos últimos meses, quando a quadrilha quis ampliar seu domínio na região. Ela entrou em conflito com outras organizações do Amazonas, Pará e São Paulo, que também vêm disputando o controle das rotas da cocaína na Amazônia. Os casos de violência e ameaças se intensificaram no segundo semestre de 2022 – com toques de recolher, invasões e assaltos constantes.
Quem vive em cidade grande – e aí não falo só de Rio de Janeiro e São Paulo, mas de Belém e Manaus também – conhece bem a história; o que vem acontecendo nas comunidades quilombolas amazônicas não é muito diferente. A Região Norte atrai o crime organizado, pois o baixo índice de desenvolvimento humano dado a essas populações fez delas presas fáceis para se tornarem engrenagens da vasta rede que se constrói para as operações ilícitas. As facções vêm construindo um ecossistema do crime.
Com a variedade de atividades, fica mais fácil ocultar a origem do dinheiro. Tráfico e garimpo ilegal construíram pistas de pouso clandestinas em áreas de garimpo e fazendas – há cerca de 2 mil no Pará. Mas os criminosos também usam as legalizadas, localizadas em propriedades particulares. Olhe só o ciclo se fechando: o desmatador abre caminho para a chegada e a saída de drogas, articula-se aos narcotraficantes.
Pelo fato de fazer fronteira com países que cultivam a tradição do plantio da folha de coca (Bolívia, Colômbia e Peru), a região é uma das portas de saída da cocaína para Europa e África, além de abastecer o mercado brasileiro, que consome quase 3 milhões de toneladas por ano. A contrapartida (sic) regional: em 2020, os nove estados da Amazônia Legal apresentaram taxas de mortalidade mais altas do que a média nacional, que foi de 23,9 mortes a cada 100 mil habitantes. Amapá (41,7), Acre (32,9) e Pará (32,5) lideram essa lista trágica, e a média na região (29,6) também é maior que a total.
Não se pode afirmar se aconteceu por uma conjunção de interesses ou uma grande coincidência, mas é fato que a política ambiental adotada no governo passado criou as condições perfeitas para que esse esquema proliferasse. O afrouxamento da legislação ambiental, o enfraquecimento ou aparelhamento de órgãos de fiscalização ambiental e de legalização fundiária – IBAMA, INCRA, FUNAI, Polícia Federal, ICMBIO, Fundação Palmares etc. – serviram para traçar um loteamento para o crime organizado na maior floresta tropical do planeta. O seu rastro de destruição e violência fica cada vez mais visível. Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, que ao completarem um ano, sinalizaram para o mundo a dimensão do problema. Vejam só o caminho que a droga faz só na Amazônia: sai lá da fronteira do Amazonas com Peru e Colômbia e prejudica quilombos no nordeste do Pará, para as bandas do mar e do Maranhão.
Este ano teremos o primeiro Censo Quilombola do IBGE e estamos diante das preparações para a Conferência do Clima (COP-30), que será realizada em Belém do Pará, em 2025. Aproveitamos a ocasião para realizar o ato Aquilombar, para denunciar os desmontes de políticas públicas, a violência contra a população quilombola e aumentar o volume de nossa voz no debate político do país. Quilombolas são fundamentais para a preservação do meio ambiente, para a cultura e a medicina popular brasileira, portanto, não podemos ser excluídos de importantes debates sobre crise climática e segurança pública. Todos nós deveríamos aprender com os indígenas as lições de resistência; em uma palavra, temos algo vital a oferecer para o Brasil de hoje: tolerância. Quilombos não são refúgios, mas locais de acolhimento. Com a mudança de governo no Brasil, não buscamos uma política de guerra às drogas que possa reproduzir mais violência contra nosso povo. O que de fato queremos é que nossas pautas não sejam invisíveis diante das agendas governamentais e das políticas públicas, mas, acima de tudo, queremos ser ouvidos. O território quilombola também é o lugar da escuta e da construção coletiva.