Profissão Polícia 09/11/2022

Ecos contra a democracia

A Constituição Brasileira deve ser o balizador das decisões dos agentes de segurança pública e as ações ou inações que destoam dessa orientação devem ser responsabilizadas, em qualquer nível hierárquico

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Gilvan Gomes da Silva

Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Há um chavão nas Forças Armadas e nas Polícias Militares que serve como uma excludente de ilicitude para uma “insubordinação”: ORDEM ABSURDA NÃO SE CUMPRE. Isso quer dizer que há uma responsabilidade do subordinado em interpretar a determinação superior e tem o dever de obedecer somente à legalidade. Cabe ressaltar que a ação ou a inação resultante da interpretação equivocada é punível. Esse chavão também está presente além dos muros dos quartéis brasileiros, como um eco em um contexto de política armamentista da população, e chegou a grupos políticos armados. A interpretação afeta/envolve diretamente os agentes de segurança pública e afronta a democracia e as instituições brasileiras.

O ex-deputado federal e ex-presidente do PTB Roberto Jefferson, com registro no Exército Brasileiro de CAC (Colecionador, Atirador e Caçador) já utilizava as redes sociais para ecoar a desobediência às leis e à ordem democrática e  em 2021 publicou um vídeo em que ameaçava com armas e ao som de disparos de tiros em que contestava o monopólio da força pelo Estado. Entre outros pontos, diz que “(…) quando tudo tiver exaurido, nós somos a retaguarda, e só por cima do nosso cadáver é que vão implantar aqui o regime ateu, marxista, comunista (…)”. O vídeo foi produzido para plataformas de vídeos e compartilhamento em aplicativos de mensagens. Em 2021 o ex-deputado foi preso por determinação do STF. Em 2022, o ex-parlamentar teve novamente sua prisão decretada. Qual o protocolo que deve ser empregado para prender uma pessoa reincidente, que sabidamente tem armas em casa e que ameaçou não obedecer a ordens que entende ser absurdas? Houve ordens diferentes do protocolo? Não temos respostas momentaneamente, mas a sequência dos fatos colocou a equipe policial, os familiares do parlamentar e a vizinhança em risco e foi registrada em vídeo com o objetivo de ecoar o dito militar e apresentar-se simbolicamente como resistência às ordens e, por que não, à Ordem.

O vídeo inicia com imagens de policiais federais chegando à residência para cumprir mandado de prisão e o ex-deputado dizendo, entre outros pontos: “(…)  o jogo que estou jogando vocês sabem, (…) eu não vou me entregar, cansei de ser vítima de arbítrio e abusos, (…) querem nos cercear, (…) querem nos esmagar, querem nos prender”; em um segundo momento há imagens que apresentam a resistência à ordem de prisão consumada, mostrando uma viatura da Polícia Federal atingida por diversos tiros e o relato de que usou fuzil e lançou granadas. As armas autorizadas pelos decretos de Bolsonaro foram usadas contra os agentes que cumprem determinações judiciais sob a alegação de que ordem ilegal não se cumpre. O resultado foi o lançamento de granadas, tiros de fuzil na viatura policial, dois agentes envolvidos feridos, e o “apito de cachorro” ganhou proporção: não se obedece a “ordens absurdas” de agentes policiais, de magistrados ou de quaisquer outros representantes de instituições.

Além de ser vítima, o tipo de envolvimento de agentes de segurança na “desobediência à ordem” pode ser coadjuvante, mas complementar. Na semana seguinte, a deputada federal reeleita Carla Zambelli persegue com uma arma na mão um cidadão que a ofende e um policial militar, que a acompanhava e em folga, solidariamente atira para o alto. O policial militar foi preso e houve o registro da ocorrência acerca das ações da deputada. Em entrevista posterior, a parlamentar diz que estava ciente das resoluções do TSE que restringem o porte de arma e votará armada, pois não reconhece o Tribunal Superior como legítimo para tal. Assim, “ordem absurda não se cumpre”. O ataque à instituição TSE reverbera na prática policial: o “apito de cachorro” (re) ecoaria e outros poderiam desobedecer e tentar votar armados? O que fazer previamente para garantir que as normas sejam respeitadas? As autoridades policiais fizeram-na ser respeitada?

O terceiro momento de envolvimento de agentes de segurança pública é de forma complexa, pois há elementos de adesão ou passividade de alguns agentes e há elementos de cooptação em vários níveis hierárquicos que exigem discernimento e experiência profissional frente “a ordem absurda institucionalizada”. O uso político da Polícia Rodoviária Federal no período da eleição tornou-se o ápice das relações aqui descritas de insubordinação à Ordem democrática e de Estado de direito. Partindo do pressuposto de que há agentes comprometidos com a segurança viária e os direitos dos usuários das vias, qual seria a ação do policial rodoviário federal perante a determinação de fiscalizar o maior número de veículos no dia da eleição? E qual deveria ser sua ação ao ser escalado somente em dupla para ir monitorar manifestações com bloqueio da via por dezenas de caminhoneiros e uma centena de manifestantes? E quem recebeu a determinação de escalar, o que deveria fazer? As determinações são absurdas, devem ser acatadas? Qual a margem de interpretação dessas ordens frente à manutenção da Ordem?

A Constituição Brasileira deve ser o balizador das decisões dos agentes de segurança pública e as ações ou inações que destoam dessa orientação devem ser responsabilizadas, em qualquer nível hierárquico. A sequência dos fatos aqui descritos conduzida pelo incentivo de desobediência da população e de agentes públicos vitimou cidadãos, agentes de segurança pública e colocou em risco instituições e a ordem democrática. Às vezes armados, dentro e fora das instituições de segurança pública ecoou o dito Ordem absurda não se cumpre contra as pessoas e o Estado Democrático de Direito. Todavia, o exato momento que deveria ser dito pelas autoridades e agentes de segurança não foi dito. Assim, para o restabelecimento do “dito” e do Estado, que agentes e autoridades sejam responsabilizados legalmente pelas causas do uso inadequado da excludente de ilicitude e pelas consequências degenerativas às instituições.

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