Ivan Marques
Advogado, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O anúncio da queda de homicídios no Brasil em 2021 causou alvoroço nas redes sociais, principalmente entre aqueles que defendem as políticas de incentivo ao acesso a armas de fogo. Em meio à tramitação no Senado Federal de projeto de lei do Governo (PL 3723/19) que transforma em lei as mudanças trazidas pelos decretos presidenciais, expandindo o alcance e quantidade de armas para caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs), a informação caiu como luva como argumento para aprovação da proposta.
O governo federal, que pouco tem feito pela segurança pública, mas não mede esforços para ampliar o acesso às armas, também se apressou em lançar mensagens em suas redes correlacionando o aumento expressivo da venda e importação de armas e munições à queda do indicador criminal. Em meio à guerra de narrativas que vive o Brasil hoje, cenário em que as armas de fogo são combustível corriqueiro para o acalorado debate, quais os efeitos sobre o crime, e em especial os homicídios, da grande expansão do acesso às armas e munições proporcionado pelo governo Bolsonaro desde 2019?
Primeiramente, ao analisar o crime de homicídio é preciso ter cautela e capacidade para identificar os fatores que influenciam o crime. O homicídio, como fenômeno complexo, seja na sua interpretação jurídica como sociológica, não é consequência de um só fator. Entender o que faz aumentar ou diminuir seu número em determinada sociedade significa saber ler os diversos fatos geradores (sociais, ambientais, circunstanciais etc.) que levam o indicador a aumentar ou diminuir. Desigualdade social, número expressivo de população jovem, crise econômica, escassez de emprego, incentivo a comportamentos violentos como machismo e masculinidade tóxica, presença de gangues, bandos e facções criminosas, entre outros, são fatores que, quando combinados, identificam elementos preditores de homicídios.
No entanto, tem-se definido na literatura acadêmica e empírica que a presença de arma de fogo em certo território não necessariamente provoca mais homicídios em uma relação de causa e efeito direto. O que se verifica, entretanto, é que a facilidade de acesso e abundância de armas de fogo em determinado espaço faz com que o instrumento seja um catalisador de violência letal. Em outras palavras, a mera presença de armas na sociedade não pode ser considerada um fato gerador de homicídios, mas, ao ser associada a outros fatores sociais, impulsiona eventos letais e delituosos.
O exemplo já gasto – mas ainda utilizado à exaustão – para argumentar a favor da liberação de armas para população civil é a comparação dos índices de homicídio no Brasil e nos Estados Unidos, onde a quantidade de armas em circulação na sociedade é muito maior. Ora, ao compararmos países com realidades socioeconômicas tão diferentes, a presença da arma de fogo não parece ser o fator determinante para o cometimento de mais ou menos homicídios. No entanto, ao fazer a mesma comparação dos EUA com seus semelhantes europeus ou asiáticos, países com mais restrição de acesso à arma de fogo, vemos que o indicador de homicídios com arma de fogo é superior em até 5 vezes.
Muito tem-se falado também da comparação do Brasil (19.4 homicídios por cem mil habitantes em 2021) com seus países vizinhos, com menores taxas de homicídio, como Argentina (5.12), Paraguai (7.86) e Uruguai (11.32). Ignora-se, também nesse argumento, que apesar das condições socioeconômicas serem mais próximas ao Brasil, outros fatores influenciam na correlação entre o acesso à armas de fogo e seu uso delituoso. A começar pelos desvios do mercado legal ao crime para alimentar a disputa entre facções criminosas pelo comércio de ilícitos e rotas do tráfico – fenômeno presente no Brasil com muito maior intensidade que nestes países. Em realidade, presenciamos atualmente a exportação das dinâmicas criminais brasileiras para esses países vizinhos justamente pela expansão dessas organizações criminais para além das fronteiras.
Talvez o exercício mais eficaz para compreender quais os resultados esperados da atual política de liberação de armas de fogo seja olharmos para a realidade brasileira atual e compará-la com outros momentos semelhantes da sua história. Nessa empreitada vale visitar o trabalho de muitos pesquisadores, com a proeminência de Daniel Cerqueira, que já arregaçaram as mangas nesse tipo de análise. Infelizmente, as evidências de que dispomos pintam um futuro nada promissor para o Brasil.
As décadas de 80 e 90, período em que a regulação de armas era esparsa e pouco restritiva, foram cenário de uma corrida às armas conjugada com degradação da economia e alguma instabilidade política. No período, a taxa de homicídios cresceu entre 1980 e 2003, em média, 8% ao ano. Em um Brasil atual no qual a taxa de desemprego vem batendo recordes, a economia patinando e a instabilidade política cada vez mais efervescente, estimular o acesso a um instrumento cuja finalidade é exercer violência letal parece transparecer um desejo de repetir a história.
Até novembro de 2021, o governo Bolsonaro registrou 460.351 novas armas (Polícia Federal e Exército), fez crescer o volume de importação de armas de fogo em 33% entre 2020 e 2021, o equivalente a US$ 52 milhões. Com incentivos normativos e tributários viu a indústria bélica nacional produzir seu primeiro fuzil comercial (T4, da Taurus) e a indústria estatal desenvolver seu próprio modelo (IA2 da IMBEL). Tudo isso relegando os sistemas de controle e fiscalização à decadência do tempo e à degradação normativa.
O governo federal, que se vangloria da queda de 7% da taxa de homicídios em 2021, correlacionando o feito à maior leniência no controle e à promoção do acesso às armas, deveria ter mais rigor na análise que faz antes de desfilar números e fatos posicionando-os como causa e efeito. Deveria também estudar a história recente do país para vislumbrar o que está por vir. Mas talvez esse seja o objetivo, criar desordem para vender segurança – e sabemos o nome que se dá a esse tipo de plano. E não é liberdade.