Luis Flavio Sapori
Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ, 2006). Foi Secretário Adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais de janeiro/2003 a junho/2007. Coordenou o Instituto Minas Pela Paz no biênio 2010-2011. Atualmente é professor do curso de Ciências Sociais da PUC Minas e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública
Uma análise preliminar das estatísticas criminais nos leva a concluir que o estado do Rio de Janeiro tem apresentado notável redução da violência nas últimas décadas. Comparando-se a taxa de homicídios em anos recentes com a do início da década de 1990, constata-se queda superior a 50%. Considerando esse indicador, não se pode afirmar que o estado fluminense esteja entre os mais violentos do Brasil. Muitas pessoas tendem a se surpreender ao ler tal afirmativa, pois as imagens cotidianas nos meios de comunicação convencionais e nas mídias sociais denotam exatamente o contrário. A capital e os municípios da Baixada Fluminense ainda suscitam no imaginário popular dos demais estados brasileiros a percepção de violência extremada e de criminalidade fora do controle. Ouso dizer que estamos diante de um caso singular no qual a percepção de insegurança do senso comum está mais próxima da realidade do que os dados oficiais de criminalidade.
A situação da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, especialmente na região metropolitana, não pode ser compreendida apenas pela taxa de homicídios. É fato que a mencionada redução na incidência do fenômeno tem realmente ocorrido, confirmada no recém-lançado Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Porém, isso não se deve a eventual sucesso das políticas de controle da criminalidade adotadas pelo executivo estadual. É possível afirmar, em sentido oposto, que o status quo da segurança pública na região metropolitana do Rio de Janeiro é pior na atualidade comparativamente ao início da década de 1990. Para tanto, é preciso considerar outros indicadores para além da taxa de homicídios ou mesmo de crimes violentos em geral. E, nesse sentido, vem à baila a extensão do domínio territorial por parte da criminalidade organizada.
Pesquisa realizada em 2020 por um pool de entidades revelou a magnitude do controle territorial na capital e demais municípios da região metropolitana por parte das milícias e das facções do tráfico de drogas. Até o fim de 2019, as milícias dominavam 25,5% dos bairros do Rio. O percentual representa 57,5% da superfície territorial da cidade, onde vivem 33,1% dos habitantes do município. As facções do tráfico estão presentes em 55 bairros da capital, correspondendo a 15,4% da extensão territorial da cidade. Há cerca de 1,5 milhão de habitantes nas áreas dominadas pelos traficantes.
Na Região Metropolitana, por sua vez, as milícias detêm o controle de 21,8% dos bairros. Já o Comando Vermelho controla 23,7%, o Terceiro Comando controla 3% e os Amigos dos Amigos dominam 0,3% . Outros 18,1% dos bairros permanecem alvo da disputa dos grupos armados. Na Baixada Fluminense, a milícia possui 3,6 milhões de moradores no território sob seu domínio. O Comando Vermelho tem hegemonia em uma área habitada por 2,9 milhões de pessoas. Pouco mais de 4,4 milhões de fluminenses residem em bairros que ainda são alvo de disputa.
Esses números estarrecedores comprovam o diagnóstico de que nas últimas décadas o Estado de Direito se enfraqueceu e muito no Rio de Janeiro. Perdeu territórios tanto para as milícias quanto para as facções do tráfico de drogas. Em outras palavras, o crime organizado se incrustou de maneira extremamente preocupante na dinâmica social e institucional do estado.
E qual tem sido a resposta das autoridades locais da segurança pública a essa realidade? A política de enfrentamento armado direto ao varejo do tráfico de drogas mediante incursões policiais nas favelas. Transformaram a política de segurança pública numa guerra particular, provocando mortandade desenfreada de todos os lados. O resultado dessa estratégia é caracterizado pelo completo fracasso. Conseguiram a proeza de deixar parcela expressiva da população carioca sob o domínio perverso das milícias e das facções do tráfico. Trata-se de exemplo prático concreto de como NÃO enfrentar as diversas manifestações de criminalidade organizada. Sendo mais incisivo, o Estado do Rio de Janeiro constitui manifestação explícita da incompetência, da inapetência e, por que não dizer, da burrice de uma política de segurança pública.
A sociedade brasileira vive uma conjuntura na qual a máxima “bandido bom é bandido morto” tem sido fomentada pela autoridade política federal. Segmento expressivo da população acredita nisso, o que tem legitimado a elevada letalidade da ação policial no país. Supõem que o controle o crime é eficaz mediante o extermínio de criminosos. Para além de ser uma premissa que contraria os valores civilizatórios, deve-se ter em mente que a elevada letalidade policial retroalimenta a violência, tornando-se, inclusive, elemento constitutivo de fomento ao crime organizado. E o estado do Rio de Janeiro é a maior prova disso.