Luis Flavio Sapori
Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ, 2006). Foi Secretário-adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais no período de janeiro/2003 a junho/2007. Coordenou o Instituto Minas Pela Paz no biênio 2010-2011. Atualmente é professor do curso de Ciências Sociais da PUC Minas e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública
As guardas municipais ocuparam espaço institucional relevante na sociedade brasileira nas últimas duas décadas. Não apenas cresceu o número delas como também ampliou-se o escopo de suas atribuições para além da mera proteção patrimonial. Desde a promulgação da Lei Federal 13.022 de 2014, que instituiu o Estatuto Nacional das Guardas Municipais, é perceptível a intensificação de uma identidade organizacional sustentada na concepção de Polícia Municipal. E a principal manifestação desse processo é a criação das famosas Rondas Ostensivas Municipais (ROMU), unidades especializadas com nítida pretensão de reprimir a criminalidade violenta. Diversas prefeituras, inclusive, compraram fuzis para municiarem suas ROMUs, mimetizando o modelo tático operacional dos Batalhões de Operações Especiais (BOPE) que são muito comuns nas polícias militares estaduais.
Essa dinâmica institucional, contudo, acaba de sofrer duro golpe. No último dia 18 de agosto, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou recurso no qual foram declaradas ilícitas as provas colhidas em busca pessoal feita por guardas municipais durante patrulhamento rotineiro, tendo sido anulada a condenação do réu por tráfico de drogas. O recurso no STJ foi interposto por Defensor Público contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que havia reafirmado condenação do acusado.
O relator, ministro Rogério Schietti Cruz, destacou em seu voto, com a aprovação do colegiado, o argumento de que a guarda municipal, por não estar entre os órgãos de segurança pública previstos pela Constituição Federal, não pode exercer atribuições das polícias civis e militares. Sua atuação deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município, conforme previsto no artigo 144 da Constituição Federal. A lei 13.022 foi ignorada no voto do relator, de modo que ele afirma categoricamente que a guarda municipal não possui a mesma amplitude de atuação das polícias. O ministro Rogerio Schietti Cruz explicou ainda que as guardas não estão impedidas de agir quando têm como objetivo tutelar o patrimônio do município, realizando, excepcionalmente, busca pessoal quando estiver relacionada a essa finalidade. Essa exceção não se confunde com permissão para realizar atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias no controle da criminalidade.
A decisão tomada pela Sexta Turma do STJ não implica de imediato a ilegalidade da policialização das guardas municipais. A despeito do efeito jurisprudencial, não foi contemplada no voto do relator a eventual inconstitucionalidade do Estatuto Nacional das Guardas Municipais aprovado pelo Congresso Nacional em 2014. Ressalto esse aspecto devido ao fato de que é essa legislação federal que tem sustentado juridicamente a crescente ampliação das atribuições das guardas municipais país afora. Entretanto, é inegável que se abre uma frente concreta de contestação a uma dinâmica institucional que parecia irreversível.
Está estabelecida uma controvérsia jurídica que passa a conformar a trajetória em curso da instituição. Toda e qualquer condenação judicial de indivíduo que resulte de ação policial de guardas municipais torna-se passível de anulação no âmbito do STJ, ou mesmo toda e qualquer prisão efetuada fora dos limites estabelecidos pelo artigo 144 da Constituição Federal fica também passível de imediato habeas corpus. Trata-se de verdadeira ducha de água fria em todos aqueles que estavam empenhados na militarização das guardas municipais, tornando-as forças repressivas do crime e em especial do tráfico de drogas.
A decisão do STJ é oportuna e vem em boa hora. Tende a colocar um freio a um nítido desvirtuamento interpretativo da principal missão das guardas municipais que vem ganhando corpo no país. Cito aqui trecho do voto do ministro Rogerio Schietti Cruz: “Nesse sentido, não é das guardas municipais, mas sim das polícias, como regra, a competência para patrulhar supostos pontos de tráfico de drogas, realizar abordagens e revistas em indivíduos suspeitos da prática de tal crime ou ainda investigar denúncias anônimas relacionadas ao tráfico e outros delitos cuja prática não atinja de maneira clara, direta e imediata os bens, serviços e instalações municipais” . Assino embaixo.