Dissolução do sonho americano aproxima Democratas e Republicanos
O fato de as chapas Harris/Walz e Trump/Vance prometerem lei e ordem não significa que as duas candidaturas sejam absolutamente equivalentes. Um tema que ainda serve como linha divisória entre as duas candidaturas é o do controle de armas de fogo
Fabio de Sa e Silva
Professor Associado de Estudos Internacionais e Professor Wick Cary de Estudos Brasileiros na Universidade de Oklahoma (EUA). Membro afiliado do Centro de Estudos sobre Profissões Jurídicas da Harvard Law School
Quem é da minha geração (faço 45 no ano que vem) cresceu com a imagem de que os Estados Unidos eram um país altamente funcional. Na minha pré-adolescência, vi amigos que foram fazer intercâmbio, parentes distantes que iam visitar a Disney, e conhecidos que migravam. Todos voltavam de lá ou mandavam cartas fascinados com aquele país.
Muitas coisas lhes eram encantadoras: o acesso imediato a produtos tecnológicos de ponta, que em geral só chegavam ao Brasil muitos anos depois de inventados; o mercado de massas, que tornava acessíveis a pessoas comuns produtos que, no Brasil, eram exclusivos das classes médias altas; ou o retorno do trabalho, que dava uma vida razoável para quem vivia de serviços, numa época em que a plataforma do senador Paulo Paim era que o salário mínimo pago ao trabalhador brasileiro fosse de US$ 100 dólares (hoje o mínimo está em US$ 250).
Frequente nesse encantamento era, também, a sensação de segurança, um grande gargalo do Brasil. Na medida em que eu mesmo fiz minhas próprias incursões nos EUA, onde enfim vim trabalhar em 2017, o que mais ouvi de brasileiros como razão para se mudarem para cá era o fato de que não aguentavam mais a violência urbana no Brasil e que queriam viver num lugar onde seus filhos pudessem andar nas ruas, sem o risco de serem assaltados ou mesmo mortos.
O contraste entre os EUA “seguros” e um Brasil “violento” também é comum no imaginário dos estadunidenses. Sempre que tive que organizar missões de estudo ou pesquisa, principalmente quando envolvem estudantes, tive que dialogar com gestores acadêmicos e pais preocupados com a segurança dos filhos, num país que “conhecem” pelo filme “Cidade de Deus”.
Mas como acontece em outras áreas, o orgulho estadunidense em relação à segurança do país está em baixa neste 2024. Entre os atentados contra o ex-presidente e atual candidato Donald J. Trump, massacres em escolas e a degradação da vida em grandes cidades, a imagem que sai da atual corrida presidencial nos EUA é de que estes se tornaram um país violento.
Para os Republicanos, esse giro na percepção de estadunidenses sobre si próprios cai como uma luva. O problema, dizem, é a falta de controle das fronteiras, que teria trazido para o país “milhões de criminosos”, além da China, que abastece o México com químicos utilizados na síntese do fentanil, a principal causa de uma verdadeira epidemia no país.
A surpresa maior veio do lado Democrata. Outrora crítico da violência policial (em 2020, suas bases pressionavam por uma agenda de reforma das polícias, com pedido de cortes no financiamento dessas organizações), esse partido agora naturalizou o fato de que a violência é um problema grave, que demanda respostas mais enérgicas do poder público. Kamala Harris, nesse sentido, passou por uma metamorfose interessante. Em 2020, ela – uma mulher negra – foi escolhida como vice em grande medida como sinalização, para as bases dos Democratas, de que Biden era sensível às demandas do movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter). Em 2024, essa simbologia se esvaiu. Harris, ao contrário, sacou da cartola sua condição de ex-chefe do Ministério Público da Califórnia, na qual teria agido com vigor contra organizações criminosas.
Controle de armas e obsessão com “inimigos internos” ainda servem como linha divisória
O fato de as chapas Harris/Walz e Trump/Vance prometerem lei e ordem não significa que as duas candidaturas sejam absolutamente equivalentes.
Um tema que ainda serve como linha divisória entre as duas candidaturas é o do controle de armas de fogo. Republicanos acusam Democratas de serem inimigos da “segunda emenda” à Constituição do país, que garante o acesso de cidadãos a armas de fogo. Dizem que, se Harris e Walz forem eleitos, privarão estadunidenses da possibilidade de comprarem armas.
Harris e Walz, por sua vez, destacam que eles próprios têm armas e que de forma nenhuma querem impedir esse comércio nos EUA. A política que defendem é a da regulação do acesso a essas armas, especialmente dos rifles automáticos, que estão por trás dos massacres em escolas, eventos públicos e, até mesmo, em supermercados.
Depois de ter sido vítima de atentados que não teriam sido possíveis sem o acesso facilitado a essas armas, Trump poderia reconhecer que é necessário ao menos fazer esse debate. A oportunidade foi dada ao candidato a vice na chapa de Trump, J.D. Vance, no único debate que teve com Tim Walz. Naquele embate, no último dia 1º de outubro, os dois foram perguntados sobre massacres em escolas, “a principal causa de morte de crianças e adolescentes nos EUA”.
Mas Vance viu problema em tudo, menos na frouxidão regulatória. Primeiro, disse que a saída passa pelo investimento em segurança nas escolas, com portas e janelas mais resistentes e até mesmo a presença da polícia nos estabelecimentos. Depois, disse que o problema de fundo é de saúde mental e que é preciso haver políticas para essa área. Por fim, afirmou que é preciso “empoderar a polícia para tirar os malvados das ruas”.
De resto, é difícil ignorar que Trump/Vance podem conduzir a agenda da “lei e ordem” por um caminho bastante mais sombrio que Harris/Walz.
À semelhança do que já vimos e vivemos no Brasil, Trump/Vance podem tratar a segurança como combate a “inimigos internos,” uma expressão que o próprio Trump já usou em comícios este ano. Migrantes, que Trump promete deportar em massa no dia seguinte à sua posse, seriam os primeiros (e diz-se até que o ex-presidente poderia utilizar a Guarda Nacional, caso não obtenha cooperação de forças estaduais para a condução desse processo).
Mas será que pararia por aí?