Disputas conflitivas entre grupos armados e forças policiais no Rio de Janeiro
Se, no imaginário popular, o confronto é muitas vezes utilizado por grupos armados como estratégia para conquistar territórios, é possível avaliar os resultados desse tipo de estratégia?
Daniel Hirata
Professor de sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense
Maria Isabel Couto
Diretora de dados e transparência do Instituto Fogo Cruzado
O relatório “Grande Rio sob Disputa: mapeamento dos confrontos por territórios[1]” é resultado da colaboração entre o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) e o Instituto Fogo Cruzado. Em artigo anteriormente publicado no Fonte Segura, mostramos como, apesar da alta frequência de confrontos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), sua distribuição é desigual, afetando, na média, menos da metade dos bairros. Os confrontos também variam em intensidade e regularidade, resultando em mais bairros/ano com conflitos de baixa intensidade e baixa regularidade (41,9%). Enquanto apenas 3,7% dos bairros analisados apresentaram confrontos intensos e regulares, apontando para problemas de violência crônica hiperlocalizados. No presente artigo destacaremos o papel das forças policiais na dinâmica de confrontos na RMRJ e identificaremos as diferenças na incidência de confrontos entre territórios controlados por milícias e por facções do tráfico de drogas.
Não é novidade, para quem acompanha a segurança pública no Rio de Janeiro, que a atuação policial é elemento indispensável para compreender as dinâmicas da violência armada na região metropolitana. Por essa razão, no estudo, estimamos o peso da participação policial nos confrontos ocorridos na RMRJ. Foram isoladas da malha de detecção as variáveis diretamente associadas à atuação das polícias[2] e analisada a proporção desse tipo de confronto dentro do total de casos identificados. Chama atenção o fato de as forças policiais estarem presentes em quase metade dos confrontos mapeados (49%): 18.760 episódios, de um total de 38.271.
Esse dado deixa claro que a ação das polícias é parte importante na dinâmica violenta de disputas por território na região metropolitana do Rio de Janeiro. Mas essa pesquisa buscou, ainda, explorar onde a ação das polícias se torna preponderante. Para isso, foram destacados aqueles elementos (bairros/ano) cujos confrontos se caracterizam pela alta presença das polícias: onde houve participação de agentes do estado em serviço em no mínimo 85% dos eventos[3].
A análise aponta que a participação da polícia nos confrontos foi maior ou igual a 85% em 858 bairros/ano, de um total de 3.356 com confronto registrado (25,6%). Em outras palavras, 1 em cada 4 bairros/ano afetados por conflitos registraram a participação de agentes de segurança do Estado na esmagadora maioria dos confrontos, respaldando a tese de que as próprias polícias são parte importante dos padrões de confronto na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Por outro lado, a pesquisa se voltou para o tipo de controle armado existente em um dado território — se ele existe e, em caso afirmativo, qual grupo é dominante — e o impacto do mesmo nos níveis de confronto. Para tanto, à malha de detecção de confrontos foi agregado o cruzamento com o Mapa Histórico dos Grupos Armados (MGARJ) publicado pelo GENI/UFF e pelo FC em 2022 — e atualizado em 2024.
A primeira pergunta que se coloca é se o controle territorial leva a uma mudança na ocorrência de conflitos. Do total de 81.613 territórios[4]/ano, os confrontos atingiram 56.473 (69,2%), indicando um grau de abrangência bastante significativo. No entanto, os confrontos não afetam de forma semelhante os territórios com controle territorial armado e sem a presença desse fenômeno. Os resultados da pesquisa indicam que a chance de um território controlado por algum grupo armado registrar confronto é quase o dobro (1,99 vezes maior) da chance de um território não controlado ter confronto.
Constatado que o domínio territorial armado de fato aumenta a ocorrência de confrontos em um território, é importante compreender se há diferenças conforme o grupo local preponderante. Dentre os confrontos que ocorrem em áreas dominadas, a maioria (62,6%) se dá em áreas do CV, seguido pelas áreas das milícias (21,6%), do TCP (10,3%) e da ADA (5,3%). A ordem, entretanto, era esperada porque segue o ranqueamento do número de territórios sob domínio de cada grupo. É, nesse sentido, importante observar a ocorrência dos conflitos não em números absolutos, mas também, em relação ao universo de territórios de cada grupo armado.
O percentual de territórios/ano controlados por facções do tráfico afetados por confrontos é bastante aproximado, alcançando uma média de 85,6%. Esse percentual é bastante superior àquele das áreas controladas pela milícia (61,4%). Em outras palavras, a chance de um território dominado pelo tráfico registrar confrontos é 3,71 vezes maior que a chance para territórios controlados por milícias.[5]
Observadas as diferenças na incidência de confrontos segundo a existência, ou não, de controle territorial por grupo armado e segundo o tipo de grupo armado preponderante, coube ainda, nesta pesquisa, uma última indagação. Se, no imaginário popular, o confronto é muitas vezes utilizado por grupos armados como estratégia para conquistar territórios, é possível avaliar os resultados desse tipo de estratégia?
O estudo demonstra que todos os grupos analisados lançam mão do conflito como estratégia para tentar o domínio de novos territórios. Quem mais conquista é o CV (45,3%), seguido da milícia (25,2%) e do TCP (23,3%). O Comando Vermelho é também o maior alvo da milícia (78,5%) e do TCP (55,2%). Mas o estudo demonstra também que os confrontos não são a principal forma de dominação de novos territórios. À exceção da ADA, todos os grupos expandiram seus territórios no período analisado. Em todos os casos, houve expansão por conquista (através do conflito armado), mas em todos os casos, a estratégia de maior sucesso foi a colonização (sem confronto): TCP (82,3%), CV (84%) e milícias (90,3%). A tabela abaixo demonstra essas conclusões.
Tabela 1: Balanço de territórios de cada grupo armado na região metropolitana do Rio entre 2017 e 2023
Grupo armado | Número de territórios em 2017 | Ganhos |
Perdas totais |
Número de territórios em 2023 |
Saldo total |
||
Por conquista |
Por colonização |
Ganhos totais |
|||||
ADA | 309 | 2 | 21 | 23 | 259 | 73 | -236 (-76,4%) |
CV | 1.997 | 88 | 463 | 551 | 299 | 2.249 | +252 (+12,6%) |
Milícia | 847 | 36 | 337 | 373 | 286 | 934 | +87 (+10,3%) |
TCP | 258 | 44 | 205 | 249 | 82 | 425 | +167 (+64,7% |
Fonte: MGARJ & Malha de detecção de confrontos do Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro – baseada em dados do DD, FC, GENI/UFF e ISP-RJ
O saldo geral mostra que o CV é o que mais ganha e mais perde em termos absolutos, seguido das milícias. As milícias, inclusive, amargam mais perdas por confrontos do que conquistas. Mas a ADA registra o pior saldo final, o que se coaduna com a hipótese de derrocada da facção a partir de 2017. E o TCP aparece com o melhor saldo final, superior ao CV.
Considerando as análises apresentadas neste artigo, concluímos, portanto, que há associação entre os confrontos e o controle territorial armado. E também que há maior incidência de confrontos em áreas com a presença do Comando Vermelho, porque é o grupo que mais conquista territórios. Contudo, confirmando a hipótese levantada na divulgação do Mapa Histórico dos Grupos Armados em 2021, observa-se que o maior avanço territorial dos grupos armados não se dá em áreas já dominadas por outro grupo e através do conflito. Apenas 5,4% dos territórios onde havia controle territorial e houve conflito, registrou troca de grupo armado, apontado para a baixa eficiência da estratégia de conquista. A colonização, por sua vez, foi a estratégia mais utilizada e mais eficiente de expansão do controle territorial armado no Rio de Janeiro ao longo dos últimos 7 anos.
[1] Disponível em: https://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2024/06/Relatorio_Mapa_dos_Confrontos_Geni_ALT3.pdf
[2] A saber: confronto com presença das polícias no DD, tiroteio decorrente de ação policial no FC, operações policiais no GENI/UFF e mortes decorrentes de intervenção policial no ISP-RJ. Para mais informações, ver capítulo 6 (metodologia) do estudo.
[3] Essa definição não se deu de forma aleatória. Ela foi baseada na curva de distribuição de proporção de confrontos com a participação de agentes do estado (uma distribuição quase normal, se excluídos os outliers com 0% e 100%, com contribuição média de 50%, mediana em 48%, valor mínimo em 16,8% e máximo em 96%, com desvio padrão de 17,4 pontos percentuais). Logo, o ponto de corte em 85% está a dois desvios padrões acima da média.
[4] O projeto do Mapa Histórico dos Grupos armados analisa o controle de grupos armados sobre diferentes territórios das cidades. Esse controle, na maioria das vezes, não se estabelece sobre bairros inteiros, mais sim sobre unidades menores (como favelas, conjuntos, loteamentos e sub-bairros) chamadas aqui de “territórios”.
[5]ct = (1.049 + 12.412 + 2.044 + 10) / (153+2.154+321+2) = 5,9; cm = 4.297 / 2.698 = 1,59; ct/cm=3,71, onde ct = chance de um território dominado pelo tráfico ter confronto em um determinado ano e cm = chance de um território dominado pela milícia ter confronto em um determinado ano.