Perícia em evidência

Disparos de armas de fogo acidentais: uma abordagem pericial de ocorrências que continuam ferindo e matando

O uso indiscriminado de armas de fogo tem elevado as estatísticas de ameaças em vias públicas, em ocorrências de trânsito e em diversas situações de abusos por parte dos que conseguem as concessões desse armamento

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

As armas de fogo são engenhos mecânicos criados pelo homem para impulsionar projéteis, que são, tecnicamente falando, objetos de diminuto porte e de pequena massa. Ao serem impulsionados para fora do cano de uma arma de fogo por um processo que se inicia com a queima de um comburente (pólvora) e com uma enorme expansão de gases resultantes dessa queima, tais projéteis adquirem velocidades que podem variar desde velocidades hipersônicas (abaixo da velocidade do som) até velocidades supersônicas (acima da velocidade do som), associadas a grandes energias. Esses pequenos objetos ganham assim um alto poder lesivo, que vai variar segundo vários fatores, dentre os quais:

  • Forma geométrica do projétil: um projétil, por exemplo, com ponta ogival, terá uma capacidade lesiva distinta de um projétil “canto vivo”, que não apresenta ponta ou ogiva;
  • Massa: existem projéteis de menor calibre e de maior calibre e é claro que, em geral, os de menor calibre apresentam menores massas;
  • Velocidade: os projéteis expelidos com velocidades menores são aqueles chamados de projéteis de baixa energia, que na prática ainda são energias bem elevadas, como nos casos das armas curtas mais comuns, calibres .38, .40; e aqueles expelidos com velocidades maiores são os chamados de alta anergia, como aqueles empregados em rifles e fuzis;
  • Deformabilidade: projéteis são pensados em seus projetos para finalidades específicas e, além de sua forma, a maneira como vão se deformar é muito relevante. Há projéteis que se “abrem” ao atingir seu alvo, resultando na forma de um “cogumelo”, aumentando assim a área de contato com os tecidos e órgãos atingidos – trata-se dos chamados projéteis expansivos. Outros projéteis foram pensados para se fragmentarem ao atingirem o alvo, ampliando a capacidade lesiva que possuem;
  • Distância da extremidade do cano da arma: é perfeitamente compreensível que, para cada faixa de distância de um disparo de arma de fogo, os efeitos lesivos sejam distintos. Assim, disparos efetuados com a extremidade do cano de uma arma encostada serão distintos daqueles efetuados em tiros a curta distância, bem como tiros a distância. Cada uma dessas possibilidades produz lesões e sinais característicos, com resultados que envolvem, além dos efeitos do próprio projétil (efeito primário), os efeitos associados a gases e materiais expelidos durante a deflagração do disparo (resíduos secundários, com material pulverulento e grânulos de pólvora incombustos);
  • O ângulo de incidência do projétil em relação do plano da região anatômica atingida: quando o projétil atinge perpendicularmente um plano, a lesão associada será distinta daquela observada nos casos em que o projétil atinge uma superfície de modo oblíquo, chegando até à situação em que o ângulo é rasante e a ação gera apenas o que denominamos popularmente de “tiro de raspão”;
  • A qualidade da munição e seu estado de conservação: diferentes qualidades de uma munição de um mesmo calibre podem interferir na capacidade lesiva de um projétil, a maior ou menor quantidade de carga explosiva em um cartucho também. Já o estado de conservação explica, por exemplo, o que acontece quando um projétil não tem energia suficiente para penetrar na pele de uma vítima, ou ainda para justificar o disparo que falhou ou, na linguagem popular, o tiro que “picotou” e não saiu.

Recentemente temos acompanhado um crescimento das notícias que envolvem disparos de arma de fogo acidentais, alguns que apenas geram prejuízos e sustos, outros que infelizmente destroem vidas, não apenas aquelas perdidas pelo óbito das próprias vítimas, mas também aquelas vidas que têm que seguir em frente, levando consigo a dor e a culpa pela responsabilidade de um disparo acidental que extermina um filho, um amigo, um funcionário, um parente, enfim, alguém que não se desejaria jamais matar.

Apenas para citar quatro tristes exemplos dessa casuística:

  • Naiany Gonandy, então com 32 anos, morreu na cidade de Vila Velha (ES) no último dia 03 de maio ao receber um tiro disparado acidentalmente, fato ocorrido enquanto sua mãe limpava um móvel de sua residência; ao derrubar uma bolsa que continha uma arma engatilhada, sobreveio o disparo fatal. A arma era uma garrucha calibre .32 (arma antiga), que pertencia à família e fora herdada de um parente já falecido. A mãe responsável pelo disparo foi autuada em flagrante por homicídio culposo e também por posse ilegal de arma de fogo de uso permitido.
  • Ozenir Bandeira de Souza, de 54 anos, morreu no seu trabalho, na cidade de Bauru (SP), após ser atingido no pescoço por um projétil de arma de fogo disparado acidentalmente pelo seu próprio patrão, um senhor de 61 anos. O fato ocorreu no último dia 02 de maio. O autor tinha autorização para posse de armas, sendo preso em flagrante e depois liberado para responder por homicídio culposo. A arma envolvida era uma pistola calibre .45.
  • Uma criança de 11 anos, do sexo masculino, morreu na cidade de Formosa (GO) ao ser atingida por um disparo acidental desferido a partir de uma espingarda. O autor era pai da criança e o fato ocorreu no último dia 27 de maio. Na ocorrência consta que o pai, de 41 anos, que possui Concessão de Certificado de Registro para atirador esportivo, manuseava a arma em casa quando o disparo foi deflagrado, atingindo a criança na região torácica, levando-a a óbito.
  • Finalmente, uma ocorrência de disparo acidental de arma de fogo envolveu o ex-ministro da educação Milton Ribeiro, recentemente preso por suspeitas de corrupção durante sua gestão no ministério. O fato ocorreu no  dia 25 de abril, no Aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília, no momento em que ele estava no balcão de uma companhia aérea. Uma funcionária de outra companhia ficou ferida com estilhaços da munição. Milton Ribeiro tem porte de arma e registro de Caçador, Atirador Desportivo ou Colecionador (CAC).

A flexibilização da aquisição e posse de armas de fogo experimentada nos últimos anos é considerada uma política do atual governo. Sem dúvida, tal política é responsável por muitas dessas tragédias e continuará vitimando pessoas inocentes em nome de uma falsa sensação de segurança. Infelizmente, além de ocorrências de disparos acidentais, o uso indiscriminado de armas de fogo tem elevado as estatísticas de ameaças em vias públicas envolvendo tais armas, em ocorrências de trânsito e em diversas situações de abusos por parte de muitos que conseguem as concessões desse armamento. Resta-nos cobrar uma maior fiscalização e seguir sonhando com a reversão dessa política armamentista irresponsável.

 

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