Márcio Júlio da Silva Mattos
Policial militar (PMDF) e Doutor em Sociologia
Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) repercutiu entre profissionais de segurança pública nas últimas semanas. A 6ª Turma do Tribunal decidiu que as abordagens pessoais devem ser antecedidas por elementos objetivos demonstráveis de maneira clara e concreta. Com isso, as provas decorrentes dessas abordagens são ilícitas, podendo os policiais serem responsabilizados penalmente por essas condutas. Em outras palavras, as abordagens pessoais, conhecidas como baculejos, revistas ou enquadros, dentre outros termos, não são entendidas como um
instrumento corriqueiro de prevenção criminal, mas uma exceção que deve ser fundamentada.
A repercussão da decisão proferida pelo STJ não me parece estar relacionada à subjetividade em abordagens pessoais. São muitas as referências doutrinárias sobre os elementos técnicos da fundada suspeita no processo penal brasileiro. Diversas dessas obras são obrigatórias nos concursos para ingresso e nos cursos de especialização e progressão funcional das polícias. Houve ainda decisões com argumentos semelhantes em tribunais superiores como o próprio Superior Tribunal de Justiça, além do Supremo Tribunal Federal. Acredito que a repercussão da decisão tenha sido causada por lidar com a discricionariedade, um tema especialmente caro às polícias.
A fundamentação do acórdão é extensa e avança sobre questões importantes no sistema de justiça criminal brasileiro, como racismo, eficiência e governança entre as agências. Apesar de relevantes, nenhum desses é o tema deste artigo. Então, por que discricionariedade policial? De forma objetiva, esse conceito está relacionado à tomada de decisão dos policiais em situações concretas, o que, por vezes, é realizado em condições precárias e em curto espaço de tempo. O conhecimento das leis, o treinamento prático e a experiência prévia, por exemplo, ajudam a
orientar o trabalho policial. Ainda assim, as decisões podem ser diferentes em casos semelhantes. E isso é um ponto importante: existe discricionariedade no trabalho policial. Reconhecer isso é, inclusive, um mecanismo de aproximação entre policiais e o público em geral. Não há superpoderes na atividade policial. Sabendo das condições em que os policiais trabalham, é possível entender por que tais e quais escolhas foram feitas.
A discricionariedade enseja que policiais diferentes podem tomar decisões distintas em situações semelhantes. Diante da ausência de referências claras, as divergências são mais acentuadas. As instituições têm um papel importante em oferecer condições de trabalho para os policiais. Não se trata apenas de infraestrutura física, mas de treinamento de qualidade e referenciais úteis, experimentados e adequados. Com isso, as instituições limitam a discricionariedade dos policiais, como indivíduos, a partir do próprio trabalho policial, como um coletivo. E o fazem como forma de controle e de proteção. Por exemplo, os procedimentos operacionais padrão (POPs) são expressões de como fazer atividades típicas de policiamento baseadas na experiência acumulada ao longo do tempo. Apesar de não serem inovações, os POPs são ainda incipientes em algumas áreas da atividade policial. Retomando o nosso tema inicial – as abordagens pessoais -, os POPs de diferentes polícias oferecem sequências de ações que orientam o policiamento de forma mais objetiva. Por exemplo, podem ser indicadas características ambientais (horário do dia, fluxo de pessoas, iluminação) ou mesmo individuais (pessoa com sangramentos aparentes, que fogem quando percebem a viatura policial etc). Longe de serem exaustivas, essas circunstâncias são dinâmicas e se somam ao conhecimento acumulado.
As evidências para orientar o trabalho policial são ainda escassas. Em grande medida, a cultura policial é refratária ao compartilhamento de informações e à produção de conhecimento extramuros. Esse insulamento tem diversas consequências, mas talvez uma especialmente relevante recaia sobre a avaliação do trabalho policial. Não se avalia o que não se conhece. Aliás, avalia-se de forma precária e limitada. Simplesmente, não há como avaliar a efetividade das abordagens no contexto brasileiro. Não há dados sistemáticos e comparáveis sobre as abordagens policiais realizadas no país. As conclusões a respeito da sua efetividade são meras especulações localizadas que, como qualquer suposição ao acaso, podem estar corretas. O fazer policial ostensivo se realiza nessas abordagens. As formas de realizar tais abordagens constituem espécie de núcleo duro do saber específico do policiamento ostensivo. São técnicas construídas e elaboradas ao longo do tempo, que envolvem considerações sobre as circunstâncias do local em que ocorre a abordagem, a pessoa abordada, o número de policiais envolvidos, assim como os equipamentos empregados. São indicadores como esses que permitiriam a avaliação dos procedimentos e o seu aprimoramento.
Outras sociedades enfrentaram a limitação da discricionariedade dos policiais em abordagens pessoais. Em Nova Iorque, por exemplo, existem diferentes momentos: a parada (stop) e a revista (frisk). Além disso, as abordagens pessoais são padronizadas em níveis de escalonamento. Grosso modo, o primeiro e o segundo níveis representam interações especulativas, em que são realizadas perguntas como o nome, a idade, o endereço e para onde está seguindo. Até esse ponto, o indivíduo pode se recusar a ser revistado. O terceiro nível representa a revista e a força pode ser utilizada mediante a suspeita fundada de crime anterior ou em andamento. As orientações da polícia britânica são semelhantes, sendo que existe a necessidade de registrar todas as paradas e revistas realizadas pelos policiais. Essas realidades não são melhores ou piores do que a brasileira. Não é esse o ponto. Mas o julgamento das
decisões dos policiais possui referenciais diferentes daqueles que vemos na maior parte das polícias brasileiras. E esse é um aspecto que merece atenção dos gestores no Brasil.
Assim, o acórdão traz à tona duas questões estruturais das polícias brasileiras. A primeira é o reconhecimento de necessidades individuais e institucionais na orientação da atividade policial. Não é suficiente basear-se apenas na tradição. A discricionariedade é própria do poder de polícia e suas funcionalidades podem contribuir para a qualidade do trabalho policial como um todo. Em segundo lugar, as evidências produzidas com e pelas polícias repercutem não apenas no trabalho policial, mas na sua relação com a sociedade em geral. As instituições devem orientar as práticas e os comportamentos, reduzindo o espaço dos julgamentos isolados. Esse movimento faz parte do desenvolvimento da qualidade do trabalho policial, o que necessariamente envolve o controle das atividades.