Múltiplas Vozes 29/05/2024

Diretriz do MJSP sobre câmeras corporais endossa mudanças no programa Olho Vivo

A portaria 648/2024 do MJSP é um documento imprescindível e que visa padronizar procedimentos no uso das câmeras corporais. Ao dispensar a obrigatoriedade das gravações ininterruptas, o documento federal pode pôr em risco os resultados alcançados pela iniciativa desenvolvida pela PMESP e aprovada por 88% da população no estado

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Samira Bueno

Doutora em Administração Pública e Governo pela FGV/ EAESP e Diretora-Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Leonardo Carvalho

Doutor em Planejamento Urbano pelo IPPUR/UFRJ e Pesquisador Sênior do FBSP

As forças policiais de países democráticos têm adotado câmeras corporais como instrumento de modernização e profissionalização do trabalho policial. No Brasil, levantamento do Núcleo de Estudos da Violência da USP mostra que as Polícias Militares de ao menos 13 estados já possuem projetos desta natureza ou estão realizando seus pilotos para implementar programas semelhantes. Neste sentido, a portaria 648/2024 do Ministério da Justiça e Segurança Pública – MJSP, que estabelece diretrizes sobre o uso de câmeras corporais pelas forças de segurança pública, é um documento imprescindível e que visa padronizar procedimentos.

Embora a portaria se aplique a todas as polícias e guardas municipais, são as Polícias Militares que têm feito uso mais frequente desta tecnologia, dada a natureza de seu trabalho, ostensivo, e o constante contato com a população. Diante do modelo de federalismo e ordenamento jurídico brasileiro, as normas previstas no documento do Governo Federal funcionam apenas como recomendações às polícias estaduais e guardas municipais, mas ao vincular sua a adoção ao financiamento destes programas pelos fundos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a portaria pode ter capacidade de incidência em várias forças de segurança.

Alguns pontos levantados pela norma federal são dignos de destaque. O primeiro deles diz respeito ao tempo de armazenamento dos registros audiovisuais das câmeras corporais. Segundo a portaria, as imagens devem ser armazenadas ao menos por noventa dias, sendo este prazo ampliado para um ano quando constarem de investigação ou processo judicial ou quando estiverem relacionados a qualquer tipo de prisão, ingresso em domicílio ou controle de distúrbios civis.

O documento também estabelece que os órgãos de segurança pública deverão disponibilizar o acesso aos registros audiovisuais produzidos pelas câmeras em tempo real às instituições do sistema de justiça criminal, o que representa um avanço e soluciona um problema já verificado em diferentes ocasiões: a demora das Polícias Militares em conceder acesso a imagens que constituem conteúdo probatório para os órgãos do sistema de justiça criminal.

A preocupação com a integridade e cadeia de custódia dos registros produzidos pelas câmeras é outro ponto que merece destaque na portaria do Ministério da Justiça. A previsão de que os sistemas de gestão das gravações seja auditável e que o material requisitado pelo Ministério Público, Defensoria Pública e autoridades policiais seja disponibilizado em forma original também representa avanço, dado que é comum que os registros concedidos aos atores do sistema de justiça cheguem editados.

O capítulo que trata dos procedimentos, no entanto, foi objeto de discussões acaloradas entre pesquisadores e ativistas que acompanham o tema. Em seu artigo 10, a portaria prevê três modalidades de gravação: a ininterrupta, adotada atualmente pela Polícia Militar de São Paulo; o modo de gravação remoto, cujo acionamento se dá por meio do sistema; e o acionamento pelo policial, que inicia a gravação por conta própria.

É importante destacar que as modalidades de gravação previstas na portaria estão alinhadas com os modelos de programas de câmeras corporais adotados no Brasil e no mundo. No entanto, diante dos resultados encontrados em São Paulo, pioneiro ao estabelecer a gravação ininterrupta, o MJSP poderia ter restringido o financiamento desta política, no caso das polícias militares, aos programas de acionamento automático, o que teria grande capacidade de indução em território nacional. Ainda que a portaria preveja, em seu artigo 8, uma longa relação de circunstâncias em que os policiais devem fazer uso das câmeras, o fato é que fiscalizar o seu cumprimento nos programas cujo acionamento depende do policial é uma tarefa quase impossível.

Estudos produzidos por diferentes organizações como a Fundação Getúlio Vargas, o Instituto Sou da Paz, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Unicef demonstraram que os resultados alcançados pelo programa Olho Vivo em São Paulo são tributados, em grande medida, ao modo de gravação ininterrupta. Ao reduzir a discricionariedade do policial sobre o acionamento da câmera, o programa da PMESP foi capaz de contornar o ponto mais sensível verificado em avaliações conduzidas em diferentes forças de segurança: o fato de que os policiais não acionam as câmeras em mais da metade dos atendimentos realizados. A pesquisa realizada pela Universidade de Stanford com policiais militares atuantes na Rocinha, Rio de Janeiro, mostrou que os agentes acionaram a câmera voluntariamente em apenas 18,5% das ocorrências. Outro estudo, conduzido junto ao Departamento de Polícia de Phoenix, verificou que os policiais acionaram a câmera em apenas 32% dos incidentes. Um amplo estudo randomizado com oito departamentos de polícia dos EUA concluiu que a discricionariedade para ligar e desligar a câmera é o fator determinante para os limitados resultados encontrados em departamentos de polícia que adotaram essa tecnologia.

O programa de câmeras corporais da PMESP foi objeto de estudos e testes pela corporação por quase uma década até que se chegasse ao modelo adotado atualmente. Liderado pelo Coronel PM da reserva, Robson Cabanas Duque, cuja tese de doutorado trata do tema, o programa previu protocolos operacionais rígidos e aspectos técnicos fundamentais para sua implementação, tal como a plataforma de gestão dos dados e o modelo de fixação das câmeras no fardamento, visto que um dos problemas encontrados em projetos anteriores foi justamente o desacoplamento acidental dos uniformes, o que vem sendo relatado por outras policias brasileiras.

Somou-se à introdução desta tecnologia uma ampla revisão dos aspectos de governança do trabalho policial, fortalecendo medidas de controle e accountability na gestão do trabalho da PMESP como a implantação da Comissão de Mitigação de Risco, cujo objetivo é a revisão dos procedimentos operacionais adotados pelos policiais em ocorrências de alto risco, e a revisão aleatória dos vídeos realizada pelos supervisores diretos.

Nos dois primeiros anos de implementação do programa verificou-se redução da subnotificação dos casos de violência doméstica, queda nas denúncias contra policiais registradas na Ouvidoria de Polícia, redução expressiva das mortes decorrentes de intervenção policial e os menores números de policiais assassinados da história. Ao induzir o cumprimento dos protocolos operacionais a câmera tornou-se um importante instrumento que funciona como proteção aos policiais, melhora o atendimento à população e contribui para a produção de provas em processos no sistema de justiça criminal. Apesar dos bons resultados, o programa está ameaçado diante da publicação, na última semana, do edital da PMESP para substituição das câmeras corporais. Dentre várias mudanças, o governo de São Paulo prevê o fim da gravação ininterrupta, o que representa risco de precarização de uma política aprovada por 88% da população.

É por isso que a sociedade civil tinha tanta expectativa na divulgação das normas federais. A leitura política é que, ao dar margem para o financiamento de programas que dependem do acionamento do policial, o documento federal, divulgado menos de uma semana após o edital da PMESP, a portaria, no fundo, acaba por endossar várias das mudanças previstas pelo governo paulista no Programa Olho Vivo, que tem sido referência nacional. Não à toa, várias autoridades do estado, como o Governador Tarcísio de Freitas e o Procurador Geral de Justiça, Paulo Sérgio Costa, vieram a público logo na sequência para defender a opção político-institucional pelo fim da gravação contínua, com os argumentos de que ela não contraria a norma federal e que, além disso, não é algo feito em nenhum lugar do mundo.

O problema é que, para além da leitura política e da interpretação que essas autoridades fazem, a questão é técnica e de como as políticas públicas são formuladas e implementadas. O programa de São Paulo é o caso de supervisão e controle da atividade policial com maior impacto no mundo. Ao desconsiderar esse impacto, as mudanças planejadas por São Paulo e a generalidade da norma federal desqualificam as evidências científicas e o esforço de profissionalização da própria PMESP, que desenhou a solução atual quase que do zero. Em suma, uma prática de gestão e compliance se rende ao zeitgeist de hiperpolarização política ideológica, que desconsidera evidências e profissionalismo na segurança pública.

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