Dilemas da direita e da esquerda que só a democracia pode resolver
Não há alternativa fora da democracia. Ela erra, exagera, é barulhenta, incomoda, produz vitórias e derrotas. Mas não há outra forma, nestes últimos 2.500 anos, de compatibilizar interesses e solucionar conflitos
Glauco Silva de Carvalho
Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo
Os tempos que vivemos são de contenda, ódio, desfaçatez, humilhação, opressão, subjugação, ojeriza, cancelamento. Passamos por momentos difíceis.
Quatro anos atrás, quando o Brasil ingressava neste terrível e tenebroso quadro de antipatia generalizada, li um artigo na Revista Piauí em que a autora revelava seu desconforto em país do leste europeu, em que famílias eram segmentadas por opiniões políticas e amizades desfeitas por divergências eleitorais.
Hoje, lamentavelmente, vivemos dias muito semelhantes no País, em que o diferente não pode ser tolerado, o divergente tem que ser aniquilado e o adversário precisa ser tratado como inimigo. Não há mais meio termo e o tal do “bom senso” perdeu lugar para o radicalismo e a intransigência.
Democracia é regime político difícil de ser cuidado, erigido e ceifado. Exige tempo, conversa, concessão, parcimônia, paciência. Leva tempo para se produzir consenso, achar meio termo, compatibilizar interesses. Ademais, em países com alto grau de desequilíbrios, as instituições que estão na ponta da linha sofrem e precisam estar muito bem preparadas para gerir conflitos. É o caso das polícias.
Tenho procurado, neste espaço, ainda que eu assuma posturas muito claras, trazer ao debate assuntos que são controversos e geram polêmicas. Enfrentá-las pode criar áreas de consenso.
Um ponto que tem me causado perplexidade são mudanças de posicionamento em relação a diversos aspectos, tanto por parte da direita como por parte da esquerda.
O conflito, ou melhor, a guerra na Ucrânia é um típico exemplo. O presidente da República se adiantou em apoiar, de forma quase reluzente, o ditador Putin. Seu governo — leia-se diplomacia — no entanto, assumiu postura, ainda que tímida, mas contrária à invasão russa nos fóruns da ONU. Ao final, ninguém sabe para onde vai o governo, vez que funciona como biruta de aeroporto. A narrativa é a de que, para atender aos “interesses nacionais”, o presidente pisca para o ditador de um país que foi comunista, e a diplomacia vai em sentido oposto. Dessa forma, segundo esse raciocínio, o Brasil ficaria bem com todas as partes. Ainda que nosso País pouco represente em termos políticos, econômicos e militares no mundo contemporâneo, todos sabemos que essa hipocrisia não para em pé.
O filósofo político da Universidade de Cambridge David Runciman, em seu livro Como a democracia chega ao fim, nos brinda com um capítulo inteiro sobre a relação entre tecnologia e democracia. Ele cita a possível influência que a Rússia, por meio de tecnólogos da informação, teria exercido sobre a eleição americana de 2017 e o processo de tomada de decisão do Brexit, na Inglaterra.
Quando vejo respeitados cientistas sociais se questionando sobre qual a dimensão da influência do direcionamento por meio das redes sociais, fica sempre uma interrogação sobre a real razão da visita de Bolsonaro, em tempo mais inapropriado, à Rússia.
Mas o que nos interessa é como as correntes políticas nacionais se posicionaram. Parcela da direita, mais liberal e conservadora no sentido estrito do termo, manifestaram claramente sua aversão ao posicionamento dúbio do presidente. A direita bolsonarista, atônita, ainda não entendeu direito o que está ocorrendo, mas se apresta a defendê-lo, ainda que engolindo em seco, já que se trata de um nítido ditador e, pior, de um país que foi a origem do comunismo no mundo, inimigo figadal do bolsonarismo. Parcela da esquerda também se posicionou contrariamente, de forma sutil, e outra parcela de forma muito acentuada.
O mesmo raciocínio se aplica à questão do sindicalismo nas polícias. Parcela expressiva da esquerda, senão a sua quase totalidade, sempre se manifestou no sentido de garantir, às Polícias Militares, o direito de greve. Nos últimos anos, no entanto, vem-se observando uma revisão nesse posicionamento.
A questão que se nos é colocada é da seguinte ordem: a mudança se dá por uma alteração de visão axiológica e teórica desse problema ou porque a base das Instituições policial-militares são bolsonaristas? E, nesse caso, não conviria dar tamanho poder às Polícias Militares.
Pois bem, a segunda alternativa demonstraria como o pragmatismo extremado e ideológico pauta decisões que deveriam ser, em tese, valorativas e conceituais.
A primeira hipótese, no entanto, demonstraria como o amadurecimento da democracia leva a consensos e limitações a direitos que, se forem ilimitados, podem gerar sérias consequências para a sociedade. Particularmente, sou contrário ao direito de greve para policiais, militares ou civis. Elas colocam em risco a vida e a integridade física de pessoas. Uma coisa é a greve de policiais civis, outra bem diferente é a de policiais militares. Ainda que eu tenha que reconhecer que, em princípio, as manifestações de policiais civis lhes trouxeram vantagens nos últimos dez anos. Governos de plantão nem sempre reconhecem os esforços e sacrifícios de seus servidores.
Pois bem, o fato de segmentos da esquerda estarem questionando o posicionamento de policiais militares e, inclusive, pasmem, invocando o Código Penal Militar, já demonstra como, nas democracias, diferentes conjecturas e conjunturas mudam a perspectiva dos partidos e das correntes político-ideológicas. E isso é bom, desde que as mudanças, como se disse acima, não sejam meramente táticas e pragmáticas, visando a interesses eleitoreiros e particularistas.
Nas sociedades contemporâneas, de massas, não há alternativa fora da democracia. Ela erra, exagera, é barulhenta, incomoda, produz vitórias e derrotas. Mas não há outra forma, nestes últimos 2.500 anos, de compatibilizar interesses e solucionar conflitos. É com ela que sairemos do buraco em que nos encontramos.