Desvio de metralhadoras em Barueri é só mais um exemplo do precário controle de arsenais estatais no Brasil
A eficiência na prevenção e repressão de desvios é fortemente dependente da qualidade do sistema de gestão dos arsenais. No Brasil, várias polícias não dispõem de sistemas eletrônicos para gerir suas armas e munições
Bruno Langeani
Gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, mestre em políticas públicas pela Universidade de York (UK) e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Autor do livro “Arma de fogo no Brasil, gatilho da Violência” (editora Telha)
O desvio de 21 metralhadoras .50 e 7.62×51 mm é o mais grave caso deste tipo nas Forças Armadas brasileiras em décadas. Para se ter uma ideia, 2010, que havia sido o ano com mais armas desviadas do Exército, teve 18 armas levadas, somando unidades de todo país. A quantidade não é a única fonte de preocupação, já que as armas levadas são muito potentes, capazes de disparar 600 tiros por minuto, podem atingir alvos com eficiência a dois quilômetros, perfurando com facilidade blindagens e ameaçando aeronaves.
De tão importante, o controle de arsenais é uma área de estudos própria em currículos de forças de segurança. PSSM[1] (sigla em inglês para Physical Security and Stockpile Management, que designa segurança física e controle de arsenais) é crucial porque, quando falha, prejudica a capacidade de um Estado de se defender, mas também gera danos à estabilidade e segurança internas. Essa disciplina trata em primeiro lugar da capacidade de detectar e reagir a uma invasão não autorizada ao estoque. Algo que o Exército, no caso de Barueri, demorou 33 dias apenas para identificar, e mais uma semana para confirmar que se tratava de um desvio; ou seja, o desvio foi identificado 40 dias depois de acontecer. Em segundo lugar, essa área também cuida de evitar incêndios e explosões, já que munições e explosivos usados por Forças Armadas e Forças de segurança são elementos instáveis e de grande risco.
A falha nesse cuidado dos estoques traz graves consequências tanto para os materiais perdidos, como também eleva o risco para a sociedade. Em 1995, uma grande explosão em um paiol de munição da Marinha, na Ilha do Boqueirão, foi sentida em localidades situadas a vários quilômetros do local da explosão, lançando ao mar vários militares e ferindo outros tantos. Em 2023, uma explosão em um paiol da Polícia Civil de Pernambuco (que armazenava armas e munições apreendidas) lançou estilhaços em várias casas vizinhas, gerando dano e pânico na população. A própria Polícia Civil ficará a cargo de investigar se o incêndio foi criminoso (para ocultar desvios).
Um dos primeiros princípios de PSSM é o controle de excedentes. Uma munição deteriorada (por exposição à umidade ou perda de validade) deve ser destruída. Uma arma de recuperação difícil ou que foi substituída por um modelo mais novo também deve ter o mesmo destino. Itens nessa zona cinzenta, que não estão aptos e que não são manuseados com frequência, são alvos preferenciais e fáceis para o desvio. É este precisamente o caso das metralhadoras de Barueri. Se o Exército considerava as armas de difícil recuperação, poderia tê-las destruído com facilidade, já que no mesmo complexo está o depósito de Suprimentos do Exército (22º D-SUP), que em São Paulo responde por todas as destruições de armas, seja as inservíveis da própria Força, seja as apreendidas no crime. Ao não fazer ou retardar a decisão de destruição, a corporação facilitou o desvio ocorrido.
Outro elemento é a segurança física e de infraestruturas. Há boas práticas para construção de armarias e depósitos de munição[2], prevendo poucas e diminutas janelas gradeadas, para reduzir potenciais pontos de desvios de material. Alarmes e câmeras de segurança dentro e no acesso dos locais são imprescindíveis, além de controles digitais de entrada, que permitam o acesso apenas a pessoas autorizadas. Esses dispositivos de segurança eletrônicos, por óbvio, assim como acontece em qualquer agência bancária, não podem depender apenas da energia elétrica da rede; deve haver geradores que possam ser acionados no caso de derrubadas (intencionais ou não) da energia. No Arsenal de Guerra, em Barueri, mecanismos rudimentares e inadequados foram facilmente burlados, com substituição de cadeados e lacres físicos e desligamento da chave de energia, interrompendo a gravação das câmeras.
A eficiência na prevenção e repressão de desvios é também fortemente dependente da qualidade do sistema de gestão dos arsenais. No Brasil, várias polícias não dispõem de sistemas eletrônicos para gerir suas armas e munições. Após a descoberta de que a juíza Patricia Acioli havia sido executada, em 2011, com munições da Polícia Militar do Rio de Janeiro (7ºBPM) por policiais militares, foi revelado que o controle de distribuição de munições da unidade era feito com giz em uma lousa! Isso mesmo, para desviar um punhado de munição bastava apagar com a mão e reescrever um novo número na lousa. Um bom sistema precisa prever controles em tempo real para cada vez que o item se move e troca de mão ou local. Para facilitar esse trabalho, várias agências e polícias vêm usando códigos de barra, ou chips com radiofrequência que agilizam a contagem/inventário e leitura de informações para preenchimento dos sistemas.
Até o momento, quatro metralhadoras .50 ainda estão no crime. Uma única arma dessas na mão de um operador capacitado traz graves ameaças para a segurança do país. É fundamental que elas sejam recuperadas rapidamente, antes que comecem a ser disparadas. No entanto, é essencial que este caso ajude a fomentar uma revisão dos procedimentos de segurança e gestão de armas de fogo e munições tanto das Forças Armadas quanto de nossas polícias.