Desafios para a proteção integral de crianças e adolescentes ameaçados de morte
O 24º Encontro Nacional do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), realizado na última semana de novembro, no Rio, destacou o fenômeno da violência letal contra crianças e adolescentes no Brasil, promovendo a capacitação e a cooperação entre os operadores do Programa nas Unidades da Federação conveniadas
Cauê Martins
Pesquisador no Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Sociologia na Universidade de São Paulo
Entre os dias 25 e 29 de novembro, foi realizado no Rio de Janeiro o 24º Encontro Nacional do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), organizado pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro (CEDECA-RJ), pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, do Governo do Estado do RJ, e pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. A própria existência no país de um programa dessa natureza há mais de 20 anos é reveladora da falência civilizacional da sociedade brasileira, que normaliza a violência letal contra crianças e adolescentes e precisa criar um programa para garantir a vida a um público para o qual deveria ser incogitável a ameaça aos direitos fundamentais. E ainda bem que existe o PPCAAM, que se coloca como a última linha de defesa da vida dessas crianças e adolescentes, depois de um conjunto de instituições ter falhado em lhes oferecer o mais básico.
O evento se propôs a destacar o fenômeno da violência letal contra crianças e adolescentes no Brasil, promovendo a capacitação e cooperação entre os operadores do Programa nas Unidades da Federação conveniadas, com vistas à proteção e implementação de ações para atender esse público sob risco de morte, ampliando a visibilidade da questão e fortalecendo as redes de proteção através de debates e colaborações intersetoriais.
Criado em 2003 e instituído em 2007, o PPCAAM é essencial para preservar a vida de crianças e adolescentes ameaçados de morte no Brasil. Fundamentado na doutrina da proteção integral do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o programa visa proteger a vida e os direitos fundamentais – à convivência familiar, à educação e ao acesso a oportunidades de profissionalização. Funciona através da remoção dos ameaçados do local de risco, seguida da reinserção em novos espaços de moradia e convivência, além do oferecimento de suporte em áreas como educação, saúde mental e inserção cultural e profissional. Um aspecto inovador do programa é o projeto “Família Solidária”, que promove o acolhimento por famílias capacitadas como uma alternativa aos serviços de acolhimento institucional. Em âmbito nacional, o PPCAAM é coordenado pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, sendo implementado nos estados em parceria com secretarias estaduais e organizações da sociedade civil. O ingresso de crianças e adolescentes no programa ocorre por meio de “portas de entrada” como Conselhos Tutelares, Ministério Público e Poder Judiciário, após uma avaliação cuidadosa da situação de ameaça.
Durante o evento, apresentamos os dados do estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o UNICEF Brasil, Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (2021-2023), sobretudo no que se refere à violência letal contra adolescentes no país. Entre 2021 e 2023, houve 15.101 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes no país, sendo que, apenas em 2023, foram contabilizadas 4.944 vítimas fatais – uma média de 13,5 mortes por dia. A faixa etária mais afetada foi a dos adolescentes de 15 a 19 anos, com uma taxa de mortalidade de 31,2 por 100 mil habitantes. Ao passo que crianças com menos de 9 anos são predominantemente vítimas de violência doméstica, os adolescentes de 10 a 19 anos são vítimas de uma violência de caráter urbano, frequentemente mediada pelo uso de armas de fogo. Sobressai-se nos resultados desse estudo a brutal desigualdade racial: 83,6% das vítimas adolescentes eram negras, e a taxa de mortalidade entre crianças e adolescentes negros do sexo masculino foi 4,4 vezes superior à de seus pares brancos. Outro destaque importante é o envolvimento de agentes estatais nas mortes: 18,2% das mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, em 2023, foram atribuídas a agentes das forças de segurança pública, sendo a taxa de letalidade policial entre adolescentes de 15 a 19 anos 113,9% superior àquela observada entre adultos.
Como pudemos observar no Encontro, esses dados do perfil das vítimas de MVI correspondem ao perfil dos atendidos pelo PPCAAM. Segundo informações apresentadas pela coordenadora nacional do programa, Denise Avelino, 73% dos protegidos pelo PPCAAM são negros e 72% têm entre 14 e 18 anos. Essa característica comum sublinha a importância do PPCAAM como uma das últimas barreiras entre a vida e a morte para muitos desses adolescentes, que são alvos preferenciais da violência policial e das disputas armadas urbanas. Durante os debates do Encontro, ficou claro que os desafios enfrentados pelo programa são velhos conhecidos: uma política de “guerra às drogas” desastrosa, além de um histórico racismo estrutural que atravessa instituições e ambientes e se reflete nas altas taxas de mortalidade da juventude negra no país. Nesse contexto, foram muito ricas as intervenções do público presente, com relatos que davam materialidade e rosto para as vidas destruídas nesse ciclo de violência.
O 24º Encontro Nacional do PPCAAM não apenas conectou as redes de colaboração e proteção como também se destacou como importante oportunidade de capacitação dos operadores do programa. Além disso, merece todo reconhecimento a sensibilidade das intervenções artísticas protagonizadas por crianças e adolescentes no evento, marcando o público com uma ambígua sensação de angústia e esperança diante da alegria e resiliência desses jovens, reiterando a urgência de que Estado e sociedade civil se comprometam com a garantia de proteção integral para todas as crianças e adolescentes do Brasil.