Desafios no financiamento da segurança pública: recursos estagnados e reforma do ICMS
Como a área da segurança pública não possui vinculação de receitas, é de se esperar que a restrição para seu financiamento
a partir da redução do valor arrecadado pelos Estados e DF, com as mudanças no ICMS, torne seu financiamento ainda
mais complexo
Ursula Dias Peres*
Doutora em economia (FGV- EESP), Pesquisadora do CEM/USP e Professora da EACH/USP
Samira Bueno
Doutora em administração pública e governo (FGV- EAESP) e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Talita Nascimento
Graduada em gestão de políticas públicas (EACH/ USP) e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
2021 marca o segundo ano da pandemia de Covid-19 no Brasil, aprofundando ainda mais a crise econômica e social pela qual o país já passava. Segundo estimativa da OMS, cerca de 15 milhões de pessoas em todo o mundo perderam suas vidas em decorrência da doença, número três vezes superior ao oficialmente notificado pelos países. Apenas no Brasil, as estatísticas oficiais apontam para mais de 629 mil mortos até dezembro de 2021, fazendo do país o terceiro com mais mortes por Covid-19 no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e Índia.
Soma-se a este cenário de crise sanitária o elevado índice de desemprego brasileiro, que fechou o ano com 12 milhões de desempregados segundo dados do IBGE, além de outros 4,8 milhões de desalentados. Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 mostram ainda que 33,11 milhões de pessoas no Brasil não têm o que comer e que 58,7% da população brasileira convive com a insegurança alimentar.
Neste contexto de crise sanitária, econômica e social, mais do que nunca a sociedade precisa que o Estado brasileiro invista em políticas sociais em suas diferentes instâncias federativas, ampliando políticas públicas de assistência social, educação, saúde e segurança. Apesar dessas necessidades urgentes, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou a lei complementar PLP 18/2022, que limita o teto de 17% para a cobrança de ICMS sobre combustíveis pelos Estados. A medida, que visa reduzir os efeitos dos constantes aumentos no valor do combustível no bolso do brasileiro, não tem efeito garantido, visto que a inflação e a pressão cambial sobre combustíveis seguem persistentes. Por outro lado, terá impacto efetivo no provimento de polícias públicas, já que o ICMS é o principal imposto dos estados.
Dados do Conselho Nacional de Secretários de Fazenda estimam que a perda de arrecadação neste exercício fiscal será entre R$64 e R$83 bilhões. A situação se agrava na medida em que o ente federal, apesar de ter prometido uma compensação aos Estados em 2022, não se mostra empenhado em cumprir a promessa e definir uma fonte de recursos para isso. Embora não seja possível calcular o impacto exato que a medida terá no financiamento das políticas de segurança pública especificamente, cabe lembrar que a Constituição Federal de 1988 obriga a vinculação de 25% dos impostos para a manutenção e desenvolvimento do ensino e 12% destes, no âmbito estadual, para a saúde. Como a área da segurança pública não possui vinculação de receitas, é de se esperar que a restrição para seu financiamento a partir da redução do valor arrecadado pelos Estados e DF, com as mudanças no ICMS, torne seu financiamento ainda mais complexo.
Como é possível perceber pela análise do gráfico 1 a seguir, o ICMS é fonte fundamental de receitas para a maior parte dos estados. Em 24 estados a receita do ICMS é mais de 30% das receitas totais e em 8 destes o ICMS representa mais da metade da arrecadação. Dessa maneira, mudanças nesse imposto têm impacto brutal no financiamento de políticas estaduais como as de segurança pública.
Esse impacto para as políticas de segurança pode ser catastrófico, na medida em que são as Unidades da Federação os principais entes responsáveis pelo seu custeio. Dos R$105 bilhões em despesas do ano de 2021, as UF responderam por 80,7% do financiamento, enquanto os gastos da União corresponderam a 12,5% e dos municípios a 6,8% do total. Destaca-se, ainda, que as despesas com segurança pública demonstram estabilidade nos últimos quatro anos, como pode ser visto no gráfico 2: no período, as despesas da União tiveram variação de 0,8%, a dos Estados e DF variação de -0,6% e apenas os municípios apresentaram crescimento, de 6%. As despesas na área foram de R$ 105 bilhões em 2018, passaram a R$106 bilhões entre 2019 e 2020, e retornaram ao patamar de R$105 bilhões em 2021.
Fonte: Ministério da Fazenda/Secretaria do Tesouro Nacional – STN; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nota: valores atualizados pelo IPCA de dezembro/2021. Despesas empenhadas.
A pequena variação verificada nas despesas da União se destaca, uma vez que, em junho de 2018, foi editada a MP 841, que garante os recursos das loterias geridas pela Caixa Econômica Federal (CEF) para o Fundo Nacional de Segurança Pública. A medida se deu em meio à aprovação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que previa a criação da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e, portanto, precisava viabilizar recursos permanentes para seu financiamento. Desse modo, a expectativa era que os recursos oriundos da loteria federal se somassem aos já executados pelo Governo Federal e pudessem materializar as ações previstas na política nacional, ampliando o orçamento da área.
Analisando os dados de Repasses das Loterias para a área de segurança, verifica-se que foram direcionados ao Fundo Nacional de Segurança Pública cerca de R$5,9 bilhões entre 2018 e 2021, e R$884 milhões para o Fundo Penitenciário Nacional, somando R$6,6 bilhões. Quando verificamos as despesas empenhadas pela União nestes dois fundos no mesmo período, as despesas também são da ordem de R$6,6 bilhões, ou seja, os recursos oriundos da loteria federal tornaram-se exclusivamente a fonte de receita dos dois principais fundos da área de segurança pública. Isso significa, portanto, que o Governo Federal reduziu as despesas na área.
Fonte: Caixa Loterias, Repasses Mensais, 2018, 2019, 2020 e 2021; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nota: valores atualizados pelo IPCA de dezembro/2021.
As despesas com a Função Segurança Pública foram de R$105 bilhões em 2021, uma retração de 0,8% em relação ao gasto do ano anterior. Os municípios apresentaram retração de 7,5%, seguidos da União, cuja retração foi de 3,4%. As Unidades da Federação, por sua vez, ampliaram as despesas de forma ínfima: 0,2% em relação ao ano de 2020.
Das 27 UFs, 13 apresentaram redução das despesas: Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Tocantins. Às restantes, observou-se um crescimento, com especial destaque ao estado de Sergipe, cuja variação foi de 45% em relação ao ano anterior. Esse crescimento decorre do aumento das despesas com a subfunção Informação e Inteligência, que saiu de R$1 milhão em 2020 para R$6 milhões em 2021.
Fonte: Ministério da Fazenda/Secretaria do Tesouro Nacional – STN; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nota: valores atualizados pelo IPCA de dezembro/2021.
* Texto em versão condensada. Para obter a versão originalmente publicada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, acesse: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2022/07/16-anuario-2022-desafios-no-financiamento-da-seguranca-publica-recursos-estagnados-e-reforma-do-icms.pdf