Múltiplas Vozes 29/11/2023

DENÚNCIAS ANÔNIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E OS DESAFIOS NA GESTÃO DAS INVESTIGAÇÕES

É preciso ter gestão efetiva capaz de transformar os dados em conhecimento útil para a instituição no enfrentamento à violência doméstica

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Eduardo Dias Leite Júnior

Mestre em Administração Pública. Policial Civil do Distrito Federal

Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil no Distrito Federal. Membro do FBSP

A denúncia anônima é uma forma simples de o cidadão relatar um possível crime. Junto à Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), as denúncias podem ser feitas por vários canais (telefone, site da PCDF, Whatsapp), o que facilita a comunicação. De forma específica no caso da violência doméstica, dados da PCDF apontam que, em 2021, foram registradas 3.016 denúncias. O número de denúncias é inferior ao de ocorrências, que no mesmo ano totalizaram 16.327. Contudo, as denúncias revelam uma das dimensões da problemática da violência doméstica, bem como os dilemas da polícia em enfrentá-las.

Por certo, os números acima podem ser ainda maiores, pois muitas mulheres não denunciam nem registram ocorrência policial – em muitos casos, percebe-se o medo de denunciar o agressor. De acordo com a literatura especializada, esse sentimento das vítimas pode explicar a permanência das mulheres nesse tipo de relação conjugal, pois, após serem submetidas a episódios de violência, mesmo com as possibilidades de denunciar e de buscar ajuda junto aos órgãos do poder público, as vítimas, em grande parte, não recorrem a essas estruturas.

Nesse sentido, para colaborar com as mulheres contra a violência doméstica, as denúncias anônimas podem ser uma ferramenta a mais. Em geral, as denúncias funcionam como produtos da investigação criminal, na qual, após a apuração do fato, ou seja, após a realização do procedimento administrativo pelos policiais, o inquérito policial pode ser instaurado na delegacia. Em seguida, o resultado do processo é destinado ao Judiciário. Portanto, juntamente à ocorrência policial, a denúncia anônima é relevante mecanismo de conhecimento e elucidação dos delitos, pois, no bojo dos dados e informações de diversas fontes, pode estar a solução da investigação criminal.

Em linhas gerais, uma vez recebida a denúncia anônima, ela é encaminhada imediatamente às unidades policiais da área do fato, as quais têm a competência de realizar a checagem. Sendo positiva, a denúncia assume a posição de uma notícia-crime e outros procedimentos investigativos são realizados, podendo chegar à indicação de autoria e materialidade do fato. Todavia, diferente da ocorrência policial em que, geralmente, conhecem-se as partes envolvidas, bem como os fatos ocorridos, na denúncia as peças estão embaralhadas e esparsas. Essa situação requer dos policiais capacidade de obter consentimento das vítimas e leitura dos ambientes para seguirem com as investigações das denúncias.

Por conta disso, há dificuldades na PCDF em constatar a veracidade das denúncias. Essa situação ficou comprovada por Eduardo Dias Leite Júnior, numa pesquisa acadêmica registrada na dissertação de mestrado – Polícia Civil do Distrito Federal: Gestão do Conhecimento e o enfrentamento à violência doméstica contra a mulher e ao Feminicídio. Conforme dados da pesquisa, entre 2015 e 2021, houve uma média de 2.997 denúncias de violência doméstica contra a mulher registradas anualmente. No entanto, cerca de 35% dessas denúncias foram investigadas entre janeiro de 2020 e junho de 2022. De acordo com o mesmo estudo, em muitos casos os policiais não respondem de maneira efetiva no sistema de Denúncias da PCDF devido à falta de uma prática adequada de gestão do conhecimento. Como resultado, as conclusões das apurações muitas vezes não são registradas adequadamente no sistema.

Nesse contexto, Eduardo Leite demonstra que não basta ter os dados, bem como canais para captação deles. É preciso ter gestão efetiva capaz de transformá-los em conhecimento útil para a instituição no enfrentamento à violência doméstica. Ademais, o pesquisador constata que as denúncias também estão sujeitas ao processo de seletividade, porquanto ao longo do caminho algumas denúncias ganham mais evidências para o operador policial, enquanto muitas outras são ignoradas não pela ausência do delito, mas pela falta de apuração. Com efeito, mesmo podendo contribuir para a subnotificação da violência doméstica, a denúncia anônima passa pelas mesmas vicissitudes de outras formas de comunicação de crime no contexto da PCDF.

Diante disso, para fortalecer a denúncia anônima como instrumento de enfrentamento da violência doméstica, sugere-se a adoção de projetos e iniciativas específicas para implementação de um plano de Gestão do Conhecimento (GC) nas organizações. Por exemplo: deve-se promover o incentivo ao compartilhamento de conhecimento entre os servidores, o devido preenchimento dos resultados das apurações nos sistemas, a investigação do uso de tecnologias de informação e comunicação para aprimorar as investigações e o desenvolvimento de programas de capacitação para os servidores, entre outros. De forma específica, projetos que melhorem o desempenho organizacional, a qualidade do atendimento às vítimas de violência doméstica e que fortaleçam a comunicação com a sociedade a fim de aumentar a satisfação dos cidadãos.

Enfim, a análise empírica do fluxo das denúncias anônimas de violência doméstica, no âmbito da PCDF, demonstra que aspectos estruturais e culturais influenciam na disposição da apuração dessas comunicações. Ademais, muito mais do que as ocorrências policiais, as denúncias anônimas enfrentam dificuldades de credibilidade pelos operadores policiais, logo a quantidade de apurações ainda é baixa. Destarte, mudanças na arquitetura da organização, por exemplo, com uma efetiva gestão de conhecimento adquirido pelas denúncias, deveriam ser priorizadas. Do contrário, as denúncias anônimas não obtêm espaço na agenda da organização e as vítimas da violência doméstica continuam sem a devida assistência do poder público.

 

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