Déjà vu de um Estado criminoso ante execuções extrajudiciais e mortes por uso desproporcional da força que se repetem
Dois julgamentos recentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos condenaram o Brasil por execuções extrajudiciais e mortes por uso desproporcional da força, violências extremas que se repetem e assinalam desacertos entre um modelo policial anacrônico e o projeto inconcluso de sociedade livre e democrática
Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto
Membro do Conselho Fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O principal tribunal de Direitos Humanos das Américas divulgou, nos dias 14 e 15 de março do ano em curso, as sentenças dos julgamentos de dois casos envolvendo o Estado brasileiro, ambos relacionados à acusação de violência policial extrema.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil em razão da execução extrajudicial de 12 pessoas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, durante a “Operação Castelinho”, ocorrida no dia 5 de março de 2002, perto da cidade de Sorocaba.
A outra sentença condenatória transcorreu do julgamento do uso desproporcional da força empregada pela Polícia Militar do Paraná durante a operação realizada nos arredores de Curitiba, em 2 de maio de 2000, contra um grupo de manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra que resultou em dezenas de feridos e uma morte.
Além do pagamento de indenizações, as sentenças estabelecem medidas que o Estado brasileiro deve adotar, como o afastamento temporário de policiais envolvidos nas mortes, o pagamento de indenização às vítimas e seus familiares e a adoção de providências destinadas a evitar que as violações se repitam.
O Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconhece a competência jurisdicional contenciosa da Corte IDH. Em vista disso, já sofreu condenações por violações à Convenção e se destaca com o maior número de casos contenciosos em tramitação. Diferentemente do que ocorre nos sistemas de justiça nacionais, o descumprimento das sentenças não gera consequências diretas e sim constrangimentos perante a comunidade internacional.
Um farto acervo de análises elucida que o uso de força excessiva e desnecessária se concentra fortemente em certas unidades policiais e grupos de indivíduos vezeiros em intervenções que resultam na mortes de civis. É essa porção menor de indivíduos – dispostos a enfrentar com temperança o perigo da morte e, principalmente, que não hesitam em matar o oponente – que, reunida por conta do poderoso atributo da “valentia” examinado por Eliézer de Oliveira, faz aferrado uso da força contra seus concidadãos.
Alguns com experiência pregressa de violência, há quem entrou na polícia movido pelo desejo de poder matar “legalmente”. Idiossincrasia que somente se revela perniciosa quando o indivíduo passa a atuar nas ruas na condição de policial; não fosse isso, é bem provável que não praticaria violência extrema contra outro ser humano, a despeito do gosto pela emoção, agressividade ou falta de empatia.
Pode parecer que, ao versar sobre o indivíduo pretende-se abraçar a clássica lógica da extirpação das maçãs podres, mas é o contrário. Debatendo sobre o tema no 18º Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em Recife (PE), Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, lançou a acurada indagação: “se já se sabe há muito que a violência abusiva está concentrada em certos indivíduos e grupos, qual o comportamento da imensa maioria dos policiais não diretamente envolvida?”.
Desvelado o cinismo corporativo que em boa medida os protege no exercício da arriscada atividade profissional, ao que parece mesmo “bons” policiais – que afirmam se dedicar ao trabalho de maneira correta e acreditam estar fazendo o que é certo para o bem da sociedade – não se sentem moralmente desconfortáveis diante das repetidas violações dos direitos humanos.
Sucedidas quase quatro décadas da abertura política e gerações de comandantes, a despeito da adesão à Matriz Curricular Nacional da Senasp e de outros inegáveis avanços, persistem nas polícias brasileiras resquícios dos tempos de verdadeiros exércitos dos governadores e da guerra suja contra a “subversão comunista”. Nódoas impregnadas na instituição, na cultura organizacional e, em particular, no subjetivismo que orienta afetos.
Diariamente, equipes táticas rondam as ruas atuando no limiar crítico da criminalidade urbana corriqueira, quando ela deixa de ser trivial e passa a oferecer maior perigo aos policiais e cidadãos. É para isso que são treinadas e estão equipadas. Muitas originadas no enfrentamento à guerrilha urbana, à sombra do AI-5. Mas, a valer, nos dias de hoje, lidam com a população comum no atendimento de questões banais da segurança pública durante a maior parte do serviço.
Uma rotina por certo maçante para os mais motivados e viciados em adrenalina que, em renitência, transformam sempre que possível as enfadonhas rondas em excitantes caçadas. Na aventura particular habitual, como ressaltou Abraham Maslow sobre a psique humana, “para aqueles que só sabem [ou que desejam unicamente] usar o martelo, todo problema é um prego”.
Comumente recidivos, logo, experimentados em burlar os mecanismos de controle, são considerados “confiáveis” pelo comando e por companheiros de guarnição, o que lhes aufere recompensas emocionais, profissionais e financeiras.
Ademais, tudo leva a crer que a persistência dos abusos tampouco embaraça a sociedade brasileira. Julita Lengruber, Leonarda Musumeci e Ignácio Cano anotam que parcela muito significativa dela, se não majoritária – atravessando todos os estratos sociais – rejeita visceralmente a noção de direitos universais e divide binariamente os seres humanos em “cidadãos de bem”, merecedores de direitos, e “não cidadãos”, aqueles que fizeram por desmerecer qualquer espécie de direito ou proteção legal. Assim, explica o trio de intelectuais, o arbítrio policial encontra apoio na rede de “microdespotismos” que marcam as relações
cotidianas, não só entre a polícia e a população civil, mas no próprio interior dessa última (violência familiar, discriminação racial, homofobia, violência contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos).
Cada atrocidade recorrente assinala o desacerto entre um modelo policial anacrônico e o projeto inconcluso de sociedade livre e democrática. Tragédia sucessiva do processo civilizatório que plasma na subjetividade coletiva traços da cultura patriarcal, escravagista e fascista, e que banaliza séculos de violência cruel contra corpos não brancos, horror de Charles Darwin e de tantos outros “estrangeiros” visitantes.
A indignação de Jurema Werneck – notadamente, no chamado dela à “luta” por direitos humanos – deixa fulgente que o fim da “caçada de homens”, quase sempre jovens pretos e pobres, exige a correição do encadeamento das idiossincrasias e condições objetivas de vida e de trabalho dos policiais.
Reclama do policial mais que a inação ante violências desnecessárias, requer denodo humanista contrário à coerção torpe da estrutura hierárquica, da cultura organizacional e do espírito de corpo.
Do Estado, reivindica a política de segurança pública que denegue a “guerra” e que, no lugar, fomente ecossistemas propícios a novas interações entre policiais e moradores dos territórios estigmatizados, oportunos ao desenvolvimento de novos afetos, representações e comportamentos empáticos e respeitosos recíprocos.
E, no tocante a cada um, pede a disposição pessoal em revolver as profundezas da consciência e dos afetos para afrontar preconceitos e suplantar a indiferença ao próximo, nessa sociedade historicamente fraturada.
Difícil acerto íntimo, à altura da inquietação de outro sagaz conhecedor da alma humana: “é possível ao menos consigo mesmo ser completamente sincero e não temer toda a verdade?” (Fiódor Dostoiéviski).
Por fim, resta avivar que não há polícia legítima desancorada da observância dos direitos humanos – nem Direitos Humanos – sem o anteparo de policiais dignos.