Múltiplas Vozes 22/01/2025

Decreto de regulação do uso da força das polícias e a crítica dos antidemocratas

O decreto serviu para desmascarar certos antidemocratas que ganham com a política violenta na segurança e ocupam postos públicos propagando medo, desinformação e discriminação

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil do Distrito Federal. Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O ano de 2023 foi encerrado com uma boa notícia para o Estado democrático de direito. Trata-se do decreto nº 12.341, que visa regular o uso da força nas polícias. É fato. A violência policial é equação ainda não resolvida pelo Estado brasileiro, apesar de a Constituição cidadã se fundamentar no princípio da dignidade humana. Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2024, entre 2013 e 2023, foram mortas 56.387 pessoas em decorrência de intervenções de policiais civis e militares, o que coloca as corporações brasileiras entre as mais letais do mundo. Essa cifra denota que as forças ainda carecem de enquadramento à ordem democrática, o que agora é intentado pelo referido decreto. Entretanto, o documento não terá vida fácil, pois toca nos interesses de quem lucra com a violência na segurança pública.

Apesar dos números de violência policial, não se trata de mazela disseminada em todas as corporações. Ao contrário, a brutalidade policial tende a ser seletiva, pois geralmente atinge grupos e territórios específicos. Pesquisas diversas analisando a violência operada pelas corporações demonstram que, em regra, os alvos são homens jovens, negros e de periferias. No quesito raça, a situação é pior. Conforme o Anuário de Segurança Pública de 2023, cerca de 80% das mortes decorrentes de intervenções policiais foram de pessoas negras. A violência estatal não reflete o envergonhado mito da democracia racial, porquanto a maioria das pessoas mortas nos confrontos policiais é negra.

A polícia no Brasil mata bastante, mas seus agentes também são vítimas da batalha contra o crime. Por exemplo, noutro levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ficou destacado que 161 policiais foram assassinados em 2022. A maioria dos agentes vitimados pertencia às corporações ostensivas e era composta por homens negros. Ademais, é provável que boa parte deles fosse de patentes rasas ou de cargos subalternos mais sujeitos à linha de frente dos confrontos. Com efeito, os números de pessoas mortas por intervenção policial e de agentes mortos na guerra contra o crime, embora em polos opostos, fazem parte da mesma cena que aponta para racismos e classismos entremeados com as idiossincrasias do enfrentamento da criminalidade.

Para piorar, no coliseu da segurança pública, em geral, a violência é ínsita ao espetáculo. O brado “bandido bom é bandido morto” ecoa nas ruas, mídias e mentalidades com forte apelo popular. Nota-se, numa pesquisa do FBSP de 2016, que ficou demonstrado que cerca de 60% dos brasileiros defendiam aquela afirmação. Não à toa, recente pesquisa para mensurar a avalição da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), realizada pela Paraná Pesquisas, apontou que 53% dos brasileiros apoiam a política linha dura da PMESP adotada pelo governador Tarcísio de Freitas. A despeito das diferenças ideológicas e metodológicas, ambas as pesquisas advertem que o policiamento duro é o paradigma dominante quando o assunto é efetividade na segurança. Nessa arena, mortes de policiais ou de bandidos fazem parte da tragédia.

Na contramão dessa situação, o governo federal editou o decreto nº 12.341/2024 para disciplinar o uso da força pelos agentes de segurança pública no país. Destaca-se que o documento expressa taxativamente que as corporações devem atuar de forma não discriminatória, sem preconceitos de raça, etnia, cor, gênero, orientação sexual. O objetivo do decreto é alinhar as polícias ao Estado democrático de direito, com valorização dos profissionais de segurança pública e respeito aos direitos humanos. Trata-se de um documento sensível aos danos da violência operada pelas corporações, seja para os cidadãos ou para os próprios policiais.

A despeito da relevância e urgência do decreto, ele é alvo de críticas por um grupo de governadores e parlamentares oposicionistas. De interferência da União nas competências dos estados até a imposição de amarras à atuação das corporações no enfrentamento da criminalidade, de tudo foi alegado pela máquina de desinformação. Para tais críticos, os policiais já estão demasiadamente submetidos aos códigos de conduta de suas corporações, logo não cabe outra legislação impondo condutas aos agentes da lei, ainda mais quando desconectada com a realidade da criminalidade. Com essa perspectiva, para eles o contingente de mortes decorrentes de intervenções policiais não é um problema material, mas apenas intriga de especialistas progressistas que desconhecem o cotidiano dos profissionais de segurança pública.

Nesse contexto, há falas distintas sobre a violência das corporações. Verifica-se o clamor dos defensores dos direitos humanos que denunciam os números absurdos de mortes na guerra contra o crime, seja de bandidos, civis ou policiais. Nota-se o repertório dos propagadores do policiamento duro, os quais acreditam que as mortes são justificadas em prol do bem maior, que é a paz social. Nesse meio, ainda há a opinião pública que, em boa parte, é formada pelos discursos punitivistas e movida pelas mídias sensacionalistas. Nessa Torre de Babel, tem avultado a gritaria dos que difundem a estratégia do terror e vendem uma polícia violenta em busca de votos nos palanques eleitorais.

Não há como negar os números da violência policial, mas há como distorcê-los em nome da lei e da ordem. Também não há como ignorar as interconexões dos mortos na guerra contra a criminalidade com temas de injustiças, racismos, classismos. Todavia, há como ludibriar os fatos com falações pseudomoralistas em defesa dos cidadãos de bem. Por isso, é possível que, em pleno Estado de direito democrático, haja setores da classe política que critiquem uma norma que valoriza a dignidade humana, como o decreto nº 12.341/2024. Pelo visto, o decreto também serviu para desmascarar certos antidemocratas que ganham com a política violenta na segurança e ocupam postos públicos propagando medo, desinformações e discriminações.

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