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DataSangue: a violência como política pública no Rio de Janeiro

Devolver balas com balas é a única política de segurança pública do Rio de Janeiro que recebe investimento há mais de 30 anos. Votos valem mais do que vidas

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Cecília Olliveira

Diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado, jornalista investigativa dedicada à cobertura do tráfico de drogas e de armas e da violência. Única finalista latino-americana do Prêmio Repórteres Sem Fronteiras para a Imprensa de 2020

“Se nos derem flores, devolveremos flores. Se nos derem balas, devolveremos balas”. Essa frase foi dita por um delegado de Polícia Civil do Rio de Janeiro logo após uma operação que terminou em 13 mortes, na favela da Nova Brasília, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio. Uma semana depois, o mesmo delegado justificou a atuação com uma movimentação migratória do tráfico de drogas: “Sabemos que os cabeças estão saindo do Rio e estamos tentando descobrir para onde estão indo”. Era outubro de 1994, mas poderia ser qualquer outro ano. Embaralhe as décadas e os episódios: os argumentos são sempre os mesmos.

Os primeiros telejornais cariocas do dia 24 de maio de 2022 abriram com a notícia de que uma moradora havia sido morta por bala perdida na Vila Cruzeiro, também na Zona Norte. Ainda eram seis horas da manhã. Ao fim dos programas, antes das nove horas, já eram 11 mortos. Nos telejornais da noite, a confirmação de mais de 20 mortos. Todos em uma mesma operação, realizada pela Polícia Militar e pela Polícia Rodoviária Federal. A justificativa era de que a operação seria para localizar traficantes de outros estados que estavam escondidos na Vila Cruzeiro. Numa entrevista coletiva, o secretário de Polícia Militar responsabilizou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 635 – de restringir operações para casos “excepcionais” e previamente comunicados ao MP – pela movimentação interestadual dos então procurados. “Começamos a reparar a migração dessas lideranças de uns tempos pra cá”. Embaralhe as décadas e os episódios: os argumentos são sempre os mesmos.

O Complexo da Penha e o Complexo do Alemão ficam lado a lado e enfrentam os mesmos problemas.

A operação que matou 23 no Complexo da Penha e apreendeu 13 fuzis já está na história como um dos episódios mais sangrentos da segurança pública fluminense. Mas o futuro assombra mais do que o passado: operações com alta letalidade têm sido rotina no Rio de Janeiro dos últimos anos. Ficamos impactados com o Jacarezinho, em 2021 – 28 mortes e seis fuzis apreendidos – sem saber que assistiríamos ao mesmo episódio um ano depois.

Mortes viram chacinas quando há três ou mais vítimas, e dados do Instituto Fogo Cruzado mostram que, em média, acontecem três chacinas na Região Metropolitana do Rio por mês. De janeiro a maio deste ano, seis das sete chacinas na Zona Norte do Rio aconteceram em ações ou operações policiais. Elas somaram 50 mortos. Houve uma em fevereiro, no mesmo Complexo da Penha, realizada pelas mesmas polícias Militar e Rodoviária Federal, que terminou com nove mortos. O governo afirma que houve queda na taxa de homicídios no Rio de Janeiro, mas quem vive a realidade e sai todo dia para trabalhar sabe que está cada vez mais assustador viver no estado. Pesquisa Ibope mostrou que mais da metade dos cariocas deixaria o Rio se pudesse. Outra pesquisa, do Datafolha, mostra que 92% das pessoas têm medo de serem assassinadas ou vítimas de bala perdida.

Tem muita gente morrendo de tiro todos os meses, e, se os locais dessas chacinas fossem apontados em um mapa, a região da Zona Norte estaria amontoada de setas. Especialmente os complexos da Penha e do Alemão, palco de operações e ocupações que terminam em sangue, sem alterar a realidade de quem mora ali. Foi assim na favela Nova Brasília, no Alemão, em 1994, com 13 mortos. Foi assim também em junho de 2007, época em que o Rio de Janeiro vivia a euforia de sediar os Jogos Pan-Americanos. Uma megaoperação policial, com auxílio da Força Nacional, deixou 19 mortos no Complexo do Alemão. O então secretário de segurança estadual, José Mariano Beltrame, chamou a operação de “incursão cirúrgica”. Ele também já disse que “um tiro em Copacabana é uma coisa. Na Favela da Coréia é outra”. E ele não estava errado.

As incursões policiais nas favelas do Rio nunca são cirúrgicas. O ditado de que para fazer omeletes é preciso quebrar alguns ovos, também é do ex-secretário e hoje é comum em comentários odiosos nas redes sociais. E se esse ovo for sua mãe, sua avó ou irmão? Está disposto a contribuir com o omelete do Estado, para um “bem maior”? Na chacina da Nova Brasília, em 1994, um menino de 3 anos levou um tiro. Em 2006, um tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo do Alemão deixou 17 crianças feridas, seis por balas perdidas e 11 por estilhaços. Elas estavam na escola. Em 2019, Ágatha Félix, 8, foi morta por um tiro de fuzil quando estava dentro de uma Kombi, indo para a casa com o avô. Em 2022, a cabeleireira Gabriele da Cunha foi morta por uma bala perdida em casa.

Esses episódios deveriam chocar a opinião pública. A imprensa deveria cobrar explicações diariamente. O poder público deveria se desculpar a cada morte de uma Ágatha, de uma Kathlen, de uma Gabriele – e mudar seu modo de agir para que não houvesse outras como elas. Mas este país trata a violência na favela como política de segurança de sucesso. O presidente Jair Bolsonaro, via Twitter, sugeriu aos críticos da operação que entrem numa área dominada pelo tráfico, fardados como policiais. O governador Cláudio Castro, também por Twitter, disse que a política de segurança no Rio exige “demonstração de força e autoridade”. “Confronto, numa palavra, coragem, noutra”, escreveu Castro. A semelhança com a frase daquele delegado, de devolver balas com balas, não é mera coincidência. Esta é, há mais de 30 anos, a única política de segurança pública do Rio de Janeiro que recebe investimento. Votos valem mais do que vidas.

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