Glauco Silva de Carvalho
Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo
Cursei a Faculdade de Direito da USP entre os anos de 1987 e 1991. Na realidade, eu estava matriculado em Ciências Sociais, pois prestara a primeira fase em 1985 e a segunda em janeiro de 1986. Aliás, prestei a segunda fase escondido, pois meu comandante à época, que omito o nome por questões éticas, havia me proibido de prestar o vestibular. Troquei os serviços daquele período com outro colega e acabei fazendo, se não me engano, os quatro dias de exame.
Aquele era um período muito intranquilo na vida política brasileira. Estávamos em plena transição democrática. Saíra o presidente Figueiredo e, com a morte de Tancredo, Sarney assumira a presidência. A Comissão Afonso Arinos, criada para formatar um “modelo” de Constituição para o Brasil, e as primeiras fases da Constituinte previam a extinção do “entulho autoritário” e, por decorrência, das Polícias Militares, como se elas tivessem sido criadas nessa fase. Pois bem, esses fatos foram tenebrosos para um jovem de 19 anos, totalmente “apolítico”, que havia cursado cinco anos na Academia do Barro Branco, saído em boa colocação, resultado de boas notas, e que pretendia ter uma carreira pela frente e, mais que isso, um futuro diferente do de sua família.
Meu pai era guarda de presídio, tínhamos uma renda familiar muito baixa, mas morávamos em casa própria, fruto das economias de meus pais com minha avó, que morava conosco. As conversas nos corredores dos quarteis, fruto da intranquilidade e do revanchismo existentes naquele período, era a de que os oficiais seriam os chefes de carcereiros. Eu pensava com os meus botões: sou grato ao meu pai por tudo o que ele me deu, mas não pretendo, após tantos anos de estudo e esforço, ser chefe de equipes que tomam conta de presos em delegacias, por mais importante e respeitável que seja essa função.
Voltei a fazer cursinho, ainda em Jundiaí, e prestei novamente a Fuvest em fins de 1986. Quando ingressei na Faculdade de Direito, o professor Dalmo de Abreu Dallari era seu diretor (1986-1990). Não tive aulas com ele, mas me lembro muito do respeito e da admiração que os alunos nutriam por ele. Dallari só dava aulas para o período matutino e, como eu trabalhava durante o dia, cursava Direito à noite. O professor de Teoria Geral do Estado era o hoje ministro do STF, Enrique Ricardo Lewandowski, com quem entabulei conversas nos idos de 2005, para fazer doutorado na FADUSP. Acabei por continuar no Departamento de Ciência Política, por pendor pessoal e por lealdade ao professor Gildo Marçal Brandão (coisas de um militar), que viria a morrer pouco tempo depois.
O professor Dallari graduou-se em Direito pela USP em 1957. Sete anos depois, ainda muito jovem, em 1963, foi aprovado em concurso e passou a ministrar aulas da Faculdade de Direito, no Departamento de Direito Público. Seu livro, Elementos de Teoria Geral do Estado, é um clássico até os dias atuais.
O que me aproximou do professor Dallari foi um pequeno livro dele, O Pequeno Exército Paulista, escrito em 1977, publicado pela Editora Perspectiva. Ainda guardo um exemplar que ele me ofertou, inclusive com sua dedicatória. Essa obra foi fundamental para minha dissertação de mestrado. Um de seus argumentos principais é o de que era preciso “[…] criar uma força militar própria que fosse a garantia efetiva da ordem e da segurança internas, bem como da autonomia política que o Estado conquistara com a organização federativa do Brasil” (p.35).
Estive em sua casa por três vezes. Ele me estendeu bibliografia e fontes. Não era meu orientador e, portanto, não tinha essa obrigação. Mas era um homem generoso, que respeitava as pessoas por igual. Posteriormente, ele fez parte da minha banca.
Por que escrevo sobre ele? Afora a questão de interface acadêmica com artigos e livros escritos sobre polícia e Força Pública, Dallari é daquelas figuras que defendem Direitos Humanos. Mas os policiais e outros segmentos do Estado que, em tese, são destinatários de suas críticas, não se sentem humilhados ou diminuídos. São dessas personalidades que, por sua brandura e singularidade, transformam-se em artífices da democracia e da defesa de minorias. Eu e o Coronel Nelson Freire Terra, também formado no Largo São Francisco e já falecido, levamos Dallari algumas vezes para falar a oficiais e praças.
Com essas figuras, aprendemos a respeitar o próximo, a não nutrir preconceitos, a não diferenciar pessoas por categorias, a defender a legalidade, a lutar por aqueles que não têm forças para perseverar.
Em tempos de polaridade, de radicalidade, de ojeriza, de ódio, Dallari deixa-nos o exemplo de complacência e de respeito ao diferente. Tive sorte em minha vida. São pessoas assim que nos fazem lutar pela democracia, contra o autoritarismo, o populismo barato e a truculência. Vale a pena lutar em memória de pessoas como ele.