Da obediência ao desempenho: a política de resultados nas Polícias Militares em uma sociedade do cansaço
Em uma sociedade de desempenho, a profissão policial militar tem se mostrado como reflexo claro de um tipo de arranjo coletivo no qual a tônica é a autoexploração, num processo que não raro se agudiza e desemboca num suicídio
Fábio Gomes de França
Pós-doutor em Direitos Humanos, doutor e mestre em Sociologia pela UFPB. Capitão da PMPB
O mês de maio de 2023 foi marcado por duas tragédias envolvendo agentes de Segurança Pública no Brasil. Na cidade de Salto, estado de São Paulo, um sargento matou a tiros dois colegas nas dependências da 3ª Companhia do 50º Batalhão de Polícia Militar do Interior. Em outro episódio, na cidade de Camocim, estado do Ceará, um policial civil matou também a tiros quatros colegas de trabalho (3 escrivães e 1 inspetor). Não nos cabe aqui tecer especulações sobre as causas que motivaram os fatos trágicos, mas, diante de uma crescente “naturalização” de eventos que envolvem o sofrimento psíquico de agentes de Segurança Pública em todo o Brasil (aumento de suicídios, transtornos de estresse e ansiedade, depressão, alcoolismo, entre outros), parece-nos no mínimo inquietante levantarmos pressupostos que indiquem como a vitimização policial, em especial a militar, tem se desdobrado em muitas frentes. Isso parece revelar problemas graves que demandam políticas de enfrentamento que em muitas situações se mostram contrárias à cultura institucional e seu modelo pragmático voltado à produção de resultados, como a prisão de indivíduos, combate ao tráfico de drogas e apreensão de armas e entorpecentes.
Violência neuronal é o termo utilizado por Han (2017) para descrever o paradigma patológico do início do séc. XXI, o qual tem demonstrado se caracterizar por doenças como a Síndrome de Burnout, a depressão, a síndrome de hiperatividade (Tdah), o estresse, para citar as principais. Logo, para o mesmo autor, não estamos em um período bacteriológico ou viral – apesar de que seus escritos sobre o tema tenham ocorrido antes da pandemia da Covid-19 -, mas neuronal. E a esse tipo de configuração social tomada por essa violência neuronal Han (2017) denomina de sociedade do cansaço ou de desempenho.
No caso do nosso olhar em específico, sabe-se que, no Brasil, até meados da década de 1990, as pesquisas que tinham as PMs como objeto de avaliação e reflexão centravam-se na condição de enxergá-las como forças repressivas do Estado, diante do “entulho autoritário” (SOARES, 2007) que permaneceu nessas instituições, as quais deixavam de perseguir e prender supostos subversivos comunistas para fazê-lo contra as consideradas classes perigosas (especialmente traficantes de droga e moradores de periferias urbanas). Mas logo o quadro de violência urbana se mostrou assunto de grande relevância, com o aumento do número de homicídios em todo o país, ocorrendo uma abertura para novos estudos que passavam a enxergar os PMs também como vítimas dessa violência estrutural, já que eles também tornavam-se número crescente dos índices de violência.
Não tardou muito para que vários estudiosos começassem a perceber, a partir da abertura simbólica, digamos assim, dos muros das casernas da PM para pesquisadores externos, assim como também o interesse de pesquisadores-policiais, que os PMs em todo o Brasil estavam adoecendo, isso a partir do aumento evidente de casos de estresse, depressão e suicídio entre esses profissionais. Nesse sentido sabemos que, por muito tempo, o regime disciplinar das PMs e a cultura organizacional herdada do Exército naturalizou, em certo sentido, a crença coletiva de que o “soldado é superior ao tempo”, sendo capaz de superar intempéries e obstáculos de qualquer natureza, já que é preparado para uma guerra, o que pode ser exemplificado pela imposição exercida contra as praças para que atuassem durante o acidente radioativo com o césio-137 em Goiânia, em 1987. A obrigação de agir por parte dos PMs mediante ordens, sem proteção, em um ambiente contaminado por radiação, o que acarretou inúmeras doenças a posteriori, revela um corpo disciplinado e obediente. Eles ficaram conhecidos como os “policiais do césio” (SILVA, 1998).
No entanto, a partir da década de 2000 outra dinâmica se descortinava, a qual passava a atingir a visão dos gestores de Segurança Pública no Brasil, tendo como origem a política do Programa Tolerância Zero, em Nova Iorque. Trata-se de um modelo gerencial de resultados e metas próprio do mundo privado-empresarial que passava a ser transposto ao nosso país. O foco centra-se na aplicação do policiamento mediante a localização e mapeamento de zonas com altos índices de violência, que são tratados por modelos de georreferenciamento. A tecnologia passava a ser usada como principal ferramenta das políticas de Segurança Pública. Mas nos parece que algumas das principais consequência negativas desse modelo têm demonstrado seus resultados, o que nos leva a fazer os seguintes questionamentos: quais as consequências para os profissionais devido à política de resultados adotada pelas PMs no Brasil? Por que os índices de homicídio[1] decaíram nos últimos dois anos depois de décadas de aumento, enquanto os de adoecimento e suicídio policial têm aumentado?
Responder a esses questionamentos é ir ao encontro do significado de uma sociedade do cansaço (HAN, 2017), pois, na interrelação entre os programas de desempenho de metas nas PMs e o adoecimento dos profissionais policiais, podemos inferir que os PMs devem ser vistos como “o sujeito de desempenho esgotado, depressivo, desgastado consigo mesmo. Cansado de lutar consigo mesmo. Totalmente incapaz de sair de si, o que paradoxalmente acaba levando à autoerosão e ao esvaziamento” (HAN, 2017, p. 91).
No campo da gestão, os oficiais dirigentes cobram-se e são cobrados para atingirem as metas estabelecidas que se traduzem na diminuição e monitoramento de índices, especialmente os homicídios. A busca pela manutenção de índices negativos e a exigência para mantê-los gera uma autocobrança, dando sentido a um excesso de positividade, pelo qual “o sujeito de desempenho concorre consigo mesmo e, sob uma coação destrutiva, se vê forçado a superar constantemente a si próprio” (HAN, 2017, p. 99). Quanto às praças e executores do policiamento de metas, nas ruas, resta a carga de trabalho excessiva através de serviços extras, somada à cultura informal dos bicos (atividade privada, serviço prestado a comerciantes, por exemplo, pelo fato de ser policial), o que exonera os PMs da ponta de lança de momentos de folga para o descanso.
É esse o quadro que está se desenhando. Em uma sociedade de desempenho, a profissão policial militar tem se mostrado como reflexo claro de um tipo de arranjo coletivo no qual a tônica é a autoexploração, ou seja, “o sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente (burnout). Ele desenvolve nesse processo uma autoagressividade, que não raro se agudiza e desemboca num suicídio. O projeto se mostra como um projetil, que o sujeito de desempenho direciona contra si mesmo” (HAN, 2017, p. 101).
[1] Destacamos em nossa indagação os índices de homicídio por serem o principal indicador que norteia a lógica das políticas de Segurança Pública por resultado no Brasil.
REFERÊNCIAS
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis-RJ: Vozes, 2017.
SILVA, Telma Camargo da. Soldado é superior ao tempo: da ordem militar à experiência do corpo como locus de resistência. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 9, p. 119-143, out. 1998. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ha/a/4Qh4kcGvpNHVwHHFGZ853wk/abstract/?lang=pt>. Acesso em: 14 ago. 2022.
SOARES, Luiz Eduardo. A política nacional de segurança pública: histórico, dilemas e perspectivas. Estudos Avançados, v.21, n. 67, p. 77-97, dez. 2007. Disponível em: <SciELO – Brasil – A Política Nacional de Segurança Pública: histórico, dilemas e perspectivas A Política Nacional de Segurança Pública: histórico, dilemas e perspectivas>. Acesso em: 24 jul. 2022.