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Da “Boca do Lixo” à Cracolândia: um território historicamente marcado pelo estigma pela repressão policial

A ação policial na Cracolândia serve a uma dimensão espetacularizada, com um domínio momentâneo desse território, criando o palco de uma balbúrdia ineficaz e onerosa

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Isabela Bentes

Cientista Social, Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília. Atualmente é doutoranda do programa Sociologia Cidades e Culturas Urbanas da Universidade de Coimbra

Conhecida hoje por Cracolândia, alcunha que pode parecer pejorativa, mas foi uma atribuição dos próprios frequentadores a essa região situada no bairro da Luz, em São Paulo, é um território historicamente marcado pelo estigma do uso de drogas e de práticas consideradas moralmente condenáveis. A Boca do Lixo, como era conhecida entre os anos 1950 e 1960, recebeu essa designação em contraposição à chamada “Boca do Luxo” (região caracterizada pelas casas de prostituição de luxo que foi deslocada da região do Bom Retiro para a região de Higienópolis), e era um espaço de encontro da boemia paulistana que circulava entre malandros, prostitutas, punguistas, com personagens que marcaram a história das noites paulistanas na metade do século XX, e que, segundo Hiroito de Moraes, o nobre rei da Boca do Lixo, foi o local onde se gestou o sêmen da injustiça social: a Boca do Lixo era o quadrilátero do pecado.

Para além da sua caracterização profana, a Boca do Lixo foi também cenário de produção do cinema marginal entre os anos de 1960 e 1970, principalmente o que ficou conhecido como a “pornochanchada”, com sua obra mais expressiva “O bandido da luz vermelha” (1968), dirigida por Rogério Sganzerla. A memória desse território, além de remontar contextos de prostituição, jogatina, roubos, homicídios e de expor a hierarquia da malandragem, o consumo de drogas atravessou as histórias costuradas nos bordéis e nas ruas da Boca do Lixo. Pervertin, um tipo de anfetamina, circulava nas veias dos usuários e nas mãos de traficantes e farmacêuticas da época e animava os dias e as noites de uma população já miserável. As incursões policiais, evidentemente, eram constitutivas da dinâmica do bairro e as negociações das mercadorias políticas aconteciam em menor proporção do que nos dias de hoje, diante da escalada de complexidade que tomou a questão desses difíceis ganhos fáceis.

Este resgate histórico situa espacialmente um bairro de intenso fluxo de pessoas, mercadorias e comércio, que foi ressignificado a partir do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando o crack altera os padrões de consumo da cocaína injetável, com forte cena nos portos de Santos, e que se espraia na capital na antiga Boca do Lixo. A complexificação do mercado de substâncias psicoativas tornadas ilícitas com o alargamento em nível internacional desse comércio, a conformação de grupos armados na gestão dessa cadeia produtiva, os fluxos migratórios, a precarização das relações de trabalho, as inúmeras determinações sociais, econômicas e políticas avolumaram as populações que circulavam em torno do bairro da Luz, não só com finalidade de uso de crack, mas como espaços de trabalho dos comerciantes da região.

A questão é que a Cracolândia se tornou uma grande pedra no calçado do capital imobiliário especulativo. Como favorecer o grande capital em um território que é privilegiado no centro de São Paulo, mas que também é profundamente estigmatizado? Pois bem, a processualidade histórica nos ensina que é necessário desvalorizar, fazer política de terra arrasada, demolir, garantir a venda da terra a preços irrisórios para o grande capital se estabelecer, erguer seus grandes empreendimentos ao custo de vidas morridas e matadas. A guerra é a continuação da política, por outros meios, lembra-nos sempre Clausewitz.

O executor dessa política de terra arrasada, dessa dimensão fundamental da guerra às drogas, tem sido o braço armado do Estado, esse grande administrador dos interesses do capital, seja ela Polícia Militar, Civil ou a Guarda Civil Metropolitana, como foi visto recentemente na incursão truculenta da GCM à Cracolândia que levou Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca Júnior, de 32 anos, a óbito depois de ter sido baleado nos arredores da Praça Princesa Isabel, na quinta-feira, 12 de maio de 2022. Ainda que a morte desse homem seja naturalizada por uma parcela da população, que deixe de ser nome e vire número estatístico, é inegável que ela expõe o horror que é a guerra aos pobres traduzida de guerra às drogas no Brasil, que encarcera e extermina a juventude deste país permanentemente.

Nesse sentido, a ação policial serve a uma dimensão espetacularizada, uma ação que não tem controle (e é intencional que não tenha), com um domínio momentâneo desse território, criando um palco de uma balbúrdia ineficaz e onerosa. Pensar a segurança é pensar a possibilidade de circular sem temor e livremente pela cidade, e isso não implica dizer que não há a necessidade de elaboração e implementação de políticas sociais sobre essa população em situação de abuso de drogas que está destituída de garantias e de proteção. A segurança precisa ser pensada para possibilitar a diversidade, as múltiplas identidades, os pertencimentos, viabilizando a democracia em seu sentido mais amplo. O que se apresenta aos olhos de todos nós é o experimentar do apagar das luzes de uma frágil democracia com a produção da insegurança, de um poder autoritário, de um projeto que contraria a liberdade e o exercício de cidadania do conjunto de toda a sociedade.

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