Múltiplas Vozes 22/10/2025

Curso superior para praças policiais militares: a oportunidade e o risco de construir um espaço reflexivo da atividade de policiamento ostensivo

É necessário reconhecer a complexidade do policiamento ostensivo, pensar em carreiras para praças docentes e reestruturar as competências na instituição entre praças e oficiais

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Gilvan Gomes da Silva

1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia. Professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB)

No dia 16 de outubro de 2025 teve início um ciclo de debates promovido pelo Centro de Pesquisa em Avaliação e Tecnologias Sociais da Universidade de Brasília (UnB) sobre o impacto do ensino superior para as praças policiais militares. A programação inclui a participação de importantes pesquisadoras brasileiras como, por exemplo, Paula Poncioni, Ana Paula Grilo e Vicente Riccio. O eventi contou também com a participação de oficiais policiais militares especialistas e pesquisadores como Daniele Alcântara, Alan Carvalho e Araújo Gomes, ex-comandante geral da Polícia Militar de Santa Catarina.

O debate é importantíssimo, pois as políticas de segurança pública ainda centralizam as ações em indicadores cujo desempenho depende da atuação do policiamento preventivo e/ou ostensivo, a qual a formação das praças policiais militares reverbera na eficácia e eficiência da política. Nesse sentido, enquanto policial militar praça há 26 anos da Polícia Militar do Distrito Federal, gostaria de destacar algumas questões que envolvem a temática.

O primeiro ponto é relembrar que há um campo social da segurança pública e que existem conflitos institucionais e infrainstitucionais. Nesse sentido, debater a formação é discutir talvez a última instância da profissionalização da atividade policial militar. Em outras palavras, é abordar a constituição de um conhecimento próprio fundamentado em experiências vivenciadas e fundamentadas na legitimidade do campo científico e da segurança pública. Assim, indiretamente, debater a projeção do ensino superior das praças policiais militares e quais os conhecimentos necessários envolve conflitos internos à instituição, no campo de segurança pública e, até, no campo militar de outras instituições.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação prevê, no artigo 83, que o ensino militar é regulado por leis específicas e admite equivalências de estudo. Portanto, alguns cursos de formação profissional e de carreiras militares têm equivalências com a graduação e com a pós-graduação. No meio militar, as carreiras de praças são equivalentes ao nível técnico e as carreiras de nível oficial são equivalentes ao nível de graduação. A hierarquia militar distribui o capital cultural e simbólico do campo: enquanto as praças realizam cursos rápidos, com treinamento de habilidades específicas e pontuais, os oficiais realizam cursos com carga horária mais extensa, disciplinas teóricas com possibilidades de desenvolvimento de pesquisas e de atividades mais complexas. Essa premissa está também na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho, que detalha as atividades desenvolvidas por cada ocupação reconhecida. Seja qual for a instituição militar, praças são técnicos e oficiais são profissionais cuja formação equivale à dos graduados.

Portanto, reconhecer a necessidade de ensino superior para praças é reconhecer a complexidade da atividade desenvolvida e a necessidade de fundamentação teórica e de pesquisas para produção de novos conhecimentos, novas tecnologias e possíveis novas ações. A consequência lógica é a equiparação do nível de complexidade da atividade com as desenvolvidas por oficiais. Uma reordenação do capital cultural e, possivelmente, do capital simbólico dentro da própria instituição, do meio policial militar, e, quiçá, do próprio campo da segurança pública.

Outro ponto é saber qual o curso de graduação necessário. No Brasil há, ainda, três tipos de níveis de conhecimento para ingresso nas polícias militares. Destacamos que a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares (Lei n.º 14.751/2023) estabelece que todas as corporações tenham o ingresso dos seus quadros por pessoas graduadas. Por conseguinte, as instituições que exigem o ensino médio estão modificando a seleção:

  1. Entrada com nível médio: o ingresso para praça exige a conclusão do ensino médio e o curso de formação é equivalente ao curso técnico, assim como as formações continuadas de carreira. As carreiras das praças das Polícias Militares do Amazonas, de Alagoas, da Bahia, do Ceará, entre outras, estão estruturadas dessa forma;
  2. Entrada com curso superior: as polícias militares do Distrito Federal, do Pará, de Minas Gerais, entre outras, exigem o ensino superior para o ingresso na carreira de praça. Cabe ressaltar que não há exigência de um curso específico. Assim, a apropriação do conhecimento do graduado recém-admitido só é possível a longo prazo, quando há a apropriação. O “aproveitamento” da formação superior está nas relações informais, neste caso, e os soldados são lotados, às vezes, de acordo com a conveniência da formação diferenciada como, por exemplo, engenheiros, contadores, profissionais da Tecnologia da Informação, entre outros, no serviço administrativo;
  3. Entrada com nível médio e formação superior posterior: a Polícia Militar do Distrito Federal, enquanto Instituição de Ensino Superior credenciada pelo Ministério da Educação, ofertou o curso Tecnólogo em Segurança e Ordem Pública para as praças policiais militares que tinham apenas o nível médio quando passou a exigir o ensino superior para ingresso nos quadros de praças, assim como fez convênio com instituição privada para atingir o maior número de policiais militares. Todavia, a Polícia Militar do Estado de São Paulo estrutura a formação profissional da praça como ensino superior: o curso de formação é equivalente à graduação, com parte teórica e prática, com dois anos de formação.

 

A segunda questão relevante é referente ao curso superior ofertado pelas instituições militares. A equivalência fundamentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação não estipula quais os critérios mínimos para que se estabeleça a equivalência. Assim, cada instituição estrutura o seu curso, tanto para oficial como, quando é o caso, para praças. Excetuando as instituições que são credenciadas e avaliadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas do Ministério da Educação, não há regulação equivalente quanto à formação acadêmica do corpo docente, composição do Núcleo Docente Estruturante e Colegiados, disponibilidade de acervo da bibliografia básica e complementares, quantidade mínima de horas-aula teóricas e práticas, atividades de extensão e de pesquisa, frequência e sistemas avaliativos internos e externos, entre outras características avaliadas regularmente que garantem que o curso proposto tenha os objetos planejados alcançados. Não atendendo esses critérios, o curso ofertado pela instituição policial militar pode ser uma solução simples para uma atividade reconhecida como complexa.

Portanto, mesmo que o curso de formação de praça ofertado pela instituição seja equivalente ao ensino superior, não há garantias de que o processo reflexivo teórico e as atividades práticas sejam equivalentes às de um curso de graduação, seja ele tecnológico, de bacharelado ou de licenciatura, caso não tenha havido credenciamento e avaliação pelo Ministério da Educação. Outro ponto é que o curso de uma instituição pode ter disciplinas totalmente diferentes de outra, mesmo que a profissão seja a mesma, com iguais competências. Assim, um policial militar de Goiás e um do Distrito Federal que policiam e integram áreas fronteiriças e até realizam operações conjuntas provavelmente têm formações diferentes.

Cabe destacar também que ainda não se sabe qual é o curso ou graduação que compete àquele que realiza o policiamento ostensivo e garante a manutenção da ordem democrática. Há inúmeros cursos autorizados pelo Ministério da Educação como, por exemplo, Tecnólogo em Segurança Pública (costumeiramente ofertado às praças), Bacharel em Ciências Policiais (alguns cursos de oficiais ofertam essa equivalência), entre outros com temática semelhante. Mas ainda não se sabe qual curso seria de formação de soldado, caso seja um que atenda às competências da profissão. Havendo um consenso sobre qual será o curso, há um problema acadêmico: quem ministrará as principais disciplinas e comporá o corpo docente?

Segundo um dos critérios de avaliação de curso superior do Ministério da Educação, no Indicador 2.7 do instrumento de avaliação de curso, o  corpo docente deve ter “experiência profissional no mundo do trabalho, que permite apresentar exemplos contextualizados com relação a problemas práticos, de aplicação da teoria ministrada em diferentes unidades curriculares em relação ao fazer profissional, atualizar-se com relação à interação conteúdo e prática, promover compreensão da aplicação da interdisciplinaridade no contexto laboral e analisar as competências previstas no PPC considerando o conteúdo abordado e a profissão.” Ou seja: o corpo docente realiza as atividades de policiamento ostensivo?

Quem realiza atividades de policiamento ostensivo são, geralmente, as praças, mas quem geralmente leciona e organiza os cursos são os oficiais. O planejamento de um curso superior que atenda às demandas das práticas laborais necessariamente requer que a experiência do trabalho auxilie na elaboração de questões, no processo reflexivo e na condução de pesquisas para problemas referentes ao cotidiano policial, com as complexidades psicológicas, sociais, culturais, econômicas, jurídicas que compõem cada ação policial. Para tanto, é necessário reconhecer a complexidade do policiamento ostensivo, pensar em carreiras para praças docentes e reestruturar as competências na instituição entre praças e oficiais.

Desta forma, os cursos stricto sensu são ofertados pelas instituições policiais militares para praças? Como formar um corpo docente com experiência profissional e acadêmica para lecionar e pesquisar temáticas relevantes à profissão sendo que quem atua não pesquisa e não debate suas ações? Como formar um curso que atenda às demandas cotidianas se as demandas cotidianas não constituem questões, pois não são percebidas por quem gerencia?

Assim, é importantíssimo o debate sobre a formação das praças policiais militares. Nesse sentido, cabe a pergunta: por que a necessidade do curso superior? Qual seria o curso superior? Quem estrutura, leciona, pesquisa, desenvolve atividades de extensão, entre outras atividades? Caso contrário, perde-se a oportunidade de construir um conhecimento próprio, com capacidade para auxiliar o campo social. Todavia, no campo no qual os conflitos institucionais e infra institucionais que ainda estruturam a manutenção da concentração do poder cultural e simbólico, há margem para reorganização desses poderes para outros segmentos do próprio campo?

 

 

 

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