Glauco Silva de Carvalho
Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo.
Cerca de 25 anos atrás, o então Comandante Geral da Polícia Militar, coronel Carlos Alberto de Camargo, encarregou um jovem tenente para acompanhar as delegações que vinham de outros países. A PMESP sempre recebe muitas visitas do exterior. Pois bem, a praxe, até então, era levar as delegações para unidades de elite da Polícia Militar (Comando de Policiamento de Choque e suas unidades subordinadas), bem como para áreas nobres (Jardins e Moema).
Esse tal tenente, abelhudo como sempre fora, sugeriu mudanças. Ao invés de visitar unidades de elite e bairros nobres, que se fosse para o Brasil real: bairros pobres, com péssima qualidade de zoneamento urbano, repletos de submoradias, vias esburacadas, espaço urbano degradado e unidades policiais pobres, com más condições de salubridade para os policiais e péssimas instalações físicas. Houve divergências, mas assim se procedeu. Passou-se a visitar Campo Limpo, Cidade Ademar, Brasilândia, Capela do Socorro, Jardim Miriam, Guaianases e as respectivas unidades da Polícia Militar. O que se via era o descalabro para com o ser humano, fosse ele morador dessas regiões, fosse ele policial que nelas trabalhasse (provavelmente o quadro só deva ter piorado nesses anos todos).
Situações hilárias ocorreram nessas visitas. Um dos pontos de parada era a antiga Casa de Detenção, ainda ativa por esses idos — segunda metade dos anos 90. Numa dessas oportunidades, um policial holandês, loiro com seus dois metros de altura, quando circulava pelas muralhas, chamou a atenção dos presos. E eles começaram a gritar “Xuxa”, “vem aqui que eu quero te comer!”, e por aí vai. Quando questionou o tenente acerca do que se falava, o jovem oficial lhe traduziu o teor dos gritos, além de lhe explicar que eram aquelas as palavras que cotidianamente os policiais de serviço ouviam, e daí para pior. Explicou-lhe também a hierarquia das celas: o líder tomava banho de sol, escolhia o colchão, estuprava os mais frágeis. Uma calamidade.
Numa dessas visitas, por volta de 1998, levei uma delegação da Inglaterra e da Holanda para a tal da “cracolândia”. Pouco se falava dela naquela época e talvez apenas jornalistas especializados em assuntos criminais e policiais conhecessem a realidade do bairro da Luz. Naquela oportunidade, o comandante do batalhão da área pediu para que a viatura encarregada do setor fosse para um determinado QTH (local). O tenente-coronel, então, pediu para que o encarregado abrisse o porta-malas da viatura. Havia uma caixa de papelão repleta de “cachimbos”. E o sargento explicou: “fazemos essa operação todos os dias. Minha missão é recolher o cachimbo, já que não podemos prender os usuários”. Uma caixa grande repleta de cachimbos por volta das 16 horas. Seu turno se iniciara às seis da manhã. Eram as apreensões daquele dia.
Passados 15 anos, eu me tornei coronel e comandante do Policiamento da Cidade de São Paulo. O que era um gato-pingado de gente se transformara num exército de pessoas drogadas, sem expectativa de vida, agressivas por vezes, nômades na região central, exercendo a mendicância e cometendo pequenos crimes, amedrontando a população local.
Numa certa oportunidade, uma mulher grávida abortara seu bebê de tantos chutes que levara. Estamos falando de 2014. Inúmeras operações foram desenvolvidas pela Polícia Militar, envolvendo grandes contingentes de policiais. Comandantes perderam seu comando e, por dignidade profissional e honradez pessoal, passaram para a inatividade.
Agora, novamente, se veem operações envolvendo as Polícias Militar, Civil e a Guarda Metropolitana. Há críticas de todos os lados. É a democracia. Mas gostaria de fazer algumas ponderações.
Se muitos dizem que a drogadição é um problema de saúde pública — e realmente o é —, por que, em vinte anos, não se tomaram providências para solucionar a problemática, que só se agrava? Por que razão é apenas a polícia a ser envolvida na solução do problema?
Triste situação. Numa dessas operações em 2014, encontrou-se um cadáver dentro de uma residência invadida, e inúmeros usuários de drogas dormindo no mesmo local, sobre imensa massa de entulho com o corpo no meio.
Eu visitava semanalmente a região. Ouvi muitos relatos e histórias, que o espaço não me permite relatar. Mas há um elemento comum nessa linha do tempo. Apenas o soldado da Polícia Militar, a trabalhar diuturnamente, com sol ou chuva, à luz do dia ou no breu temerário da noite, apartando brigas ou orientando usuários. Conversei com policiais cuja saúde mental estava claramente abalada. Em que pese a compaixão pelo ser humano que se rendeu ao vício, não é fácil conviver com esse público cotidianamente. Promotores e juízes apenas em momentos em que a mídia faz cobertura. Assistente sociais, somente nos horários de expediente. Profissionais de saúde, apenas até as 17:00hs. Nada mais além do policial militar.
Minha esposa, que é médica, recebeu relatos de suas pacientes, de que as pessoas têm sido violentamente agredidas durante a noite, quando se deslocam para suas residências. Apenas para roubar alguns trocados e levar um celular. O cidadão já não registra mais a ocorrência. Perdeu a confiança e o respeito do poder público.
A mesma democracia que permite e assegura a crítica — e assim o deve ser — precisa ser a democracia que soluciona problemas reais e concretos do cidadão e do policial. De 2016 para cá as coisas só pioraram. Não à toa, a população vislumbra a democracia como algo não tangível, que não deve ser defendida. Bolsonaro — não precisam dizer, ele não é responsável pela cracolândia, eu sei — com sua pregação golpista, não encontra tanta oposição quanto deveria na sociedade brasileira.
Afinal, o que é essa democracia e o que ela tem trazido para o cidadão comum?