Contratos da Segurança Privada com o Estado: Problemas recorrentes
No Brasil, o Estado é o maior cliente da segurança privada. Todavia, muitas empresas de segurança privada no país recusam realizar contratos com o Estado. Por que isso acontece? O que existe nos contratos entre público e privados que os torna tão difíceis de gerir e com tanta margem para ilicitudes?
Susana Durão*
Professora da UNICAMP e Coordenadora da Secretaria de Vivência nos Campi da UNICAMP
É fundamental entender como operam e que problemas enfrentam os contratos e serviços de segurança privada no país. Do lado do setor público, tem sido concluído que o Estado Brasileiro terceirizou quase na íntegra seus serviços de vigilância, embora isso ocorra certamente mais em nível federal e estadual do que municipal. Do lado do mercado, estima-se que os contratos das empresas com o setor público equivalem a um terço de toda a atividade da segurança privada, sendo os outros dois terços divididos entre instituições financeiras e contratantes privados.
Nas duas últimas décadas, o governo de São Paulo tem investido, e bem, em ações de padronização e monitoramento da gestão contratual terceirizada, entre os quais se encontram os serviços de segurança e vigilância privada, por meio do Estudos Técnicos de Serviços Terceirizados. No CADTERC são delineados especificações técnicas e preços referenciais dos serviços mais comuns que representam os maiores gastos do Estado. Esses referenciais estabelecem o valor máximo permitido para a contratação dos serviços terceirizados. O uso desse instrumento protege assim os recursos públicos, dificultando o uso indevido do dinheiro e evitando preços superfaturados na área de serviços. Pode-se considerar que essa medida trouxe um ganho em transparência face ao que acontece em outros segmentos terceirizados pelo Estado.
Não obstante todo o esforço do governo do Estado de São Paulo na padronização e no estabelecimento de procedimentos e especificações técnicas, bem como na apuração de preços referenciais, o que se tem observado é uma sucessiva declinação dos lances finais ofertados pelas empresas. É de notar que as empresas, com o intuito de ganhar no pregão a licitação, reduzem muito o valor da proposta, flagrantemente abaixo da avaliação padrão. Como demonstrado, os valores de referência são inflexíveis, mas os lances finais decorrentes dos pregões não param de cair.
Sendo o critério de aceitabilidade nos pregões o menor preço ofertado, desde que atendendo requisitos e normas documentais, a empresa que concorre com os preços mais baixos acaba invariavelmente por vencer a licitação. Para vencer a licitação e conseguir a contratação, as empresas ofertam propostas com preços gritantemente baixos, muito abaixo do referencial do CADTERC, o que no entendimento dos empresários tradicionais do setor representa uma “concorrência predatória”.
Isso cria uma margem para ilicitudes graves e problemas de regulação na execução dos contratos de serviços terceirizados entre as empresas privadas e o Estado. Isso levanta a questão da intensa mercadorização de uma área de serviços que merecia, no mínimo, uma reflexão estratégica e planejamento transversal qualificado. Na melhor das hipóteses, empresas com algum porte podem considerar importante trabalhar com o Estado, eventualmente por razões políticas ou marketing corporativo, conseguindo obter lucros ou sustentabilidade em outros contratos privados.
Mas é pouco provável que empresários aceitem operar abaixo da linha de custo ou que sustentem anos a fio a transferência de ganhos de uns serviços e contratos para cobrir perdas de outros. Deste modo, verificam-se problemas na gestão de contratos. É comum que algumas empresas adotem uma gestão continuada de redução de custos para se sustentar. E para conseguir esse tipo de gestão, são comuns e recorrentes vários tipos de ilicitudes.
- Duplo emprego irregular de vigilante. De modo a reduzir os encargos, tem sido comum usar um vigilante em dois contratos distintos da mesma empresa. Isto é, se um vigilante trabalhar em dois postos, situados em dois contratos, cumprindo 12 horas em um e 12 horas no outro, ele ou ela passa a trabalhar de forma ininterrupta, burlando a lei. Embora sujeita a grande nível de exaustão, com receio de perder o emprego, a maioria dos vigilantes não denuncia a prática e se submete a ela para ganhar um salário a mais “por fora”.
- Falta de cobertura de postos. Trata-se aqui da cobertura apenas parcial dos postos de vigilância contratados, deixando sempre algum posto sem alocação de profissional, o que frequentemente acontece nos locais de menor visibilidade pública. Não havendo registro de fiscalização sistemática e comprovação da referida falta, não há como se apurar o descumprimento a posteriori.
- Substituição por categorias sem profissionalização. Para os contratos saírem mais baratos, as instituições tomadoras dos serviços podem se seduzir em contratar serviços de controladores de acesso, porteiros ou outras funções similares. As últimas não são necessariamente enquadradas como sendo de segurança, mas na prática acabam efetuando, ilicitamente, atribuições de vigilantes.
- Emprego de funcionários irregulares. Ter a carteira nacional de vigilante, com realização do curso de 200 horas, é um requisito obrigatório por lei para exercer a profissão. Mas, de fato e no cotidiano, podem ser alocados pela empresa outros profissionais que nem sempre são regularmente contratados pela mesma, mesmo se no momento do contrato foi previamente apresentada pela empresa a listagem de profissionais que atendem à normatização para vigilante. Desta forma, passam a ser descumpridos não só os requisitos para os profissionais de segurança como, também, as obrigações trabalhistas, tributárias e fiscais.
- Fornecimento irregular dos requisitos especificados em contrato. Acontece frequentemente o fornecimento irregular, ou falta de fornecimento, de equipamentos de proteção individual (EPIs), uniformes, e outros instrumentos de trabalho. Também pode dar-se falta de manutenção preventiva dos veículos utilizados em postos motorizados (carros, motos, bicicletas), falta de oferecimento dos cursos de reciclagem obrigatórios por lei, jornadas de trabalho sem o respeito ao período de folga remunerada, etc.
- Empresas sem autorização regular ou clandestinas. Sabemos que o recrutamento de profissionais ou contratação de empresas sem validação, garantia ou homologação da Polícia Federal caracteriza esquemas de atividade clandestina nos mercados da proteção privada por todo o Brasil. Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2022, estima-se que pelo menos 50% da atividade de proteção privada no país seja dessa natureza. Por sua vez, se não houver monitoramento adequado, seja a fiscalização documental, seja a fiscalização in loco nos postos, diversas ilicitudes que associamos às firmas clandestinas podem ser detectadas na gestão dos contratos de empresas de segurança privada com o Estado.
Em resumo, arriscamos afirmar que os grandes contratos de serviços de segurança, seja com o Estado, bem como com o setor privado, dentro das condições que aqui descrevemos, vêm sendo forçosamente cumpridos numa região de capitalismo aventureiro. Mas no caso do Estado, isso é extremamente preocupante. O Estado deveria ser o exemplo e facilitar o funcionamento adequado do sistema de trabalho com segurança privada, bem como diminuir os efeitos nefastos da predação financeira na competição por contratos público/privados. Cabe ao Estado prever os danos das regulamentações criadas e proporcionar uma fiscalização adequada de modo a garantir a melhor utilização possível dos recursos públicos.
* Texto em versão condensada. Para obter a versão originalmente publicada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, acesse: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2022/07/19-anuario-2022-contratos-da-seguranca-privada-com-o-estado-problemas-recorrentes.pdf