Comunidades Terapêuticas: ‘velhos’ modos de governar os indesejáveis
Essas comunidades, supostamente 'terapêuticas', só legitimam o desmonte pelo qual passa o Sistema Único de Saúde e o Sistema Único de Assistência Social, assim como os retrocessos normativos e legais que têm atravessado a política de saúde mental e a política de enfrentamento às drogas
Ana Claudia Camuri
Professora-adjunta da Universidade Federal Fluminense (Departamento de Psicologia de Rio das Ostras) e pesquisadora do Laboratório de Gestão de Políticas Penais - LabGEPEN/UnB
Em novembro de 2022, o Fonte Segura (Edição 164), em sua polifonia de vozes, possibilitou-me trazer a discussão sobre as Comunidades Terapêuticas (CT’s) que, apesar de parecer ser uma questão de saúde, e não de segurança pública, acaba se imbricando com ela de maneira insidiosa no Brasil.
Uma das afirmações feitas na referida discussão foi a apropriação, por parte de alguns grupos, do termo “Comunidades Terapêuticas” para usá-lo a serviço de determinados modos de governar os segmentos populacionais que atrapalham o fluxo ligeiro e volátil do capitalismo e, paradoxalmente, o alimentam, sobretudo desde 2010, quando passaram a receber financiamento por parte do Estado brasileiro por meio das políticas de saúde, assistência social, justiça, segurança pública e cidadania. No entanto, a indefinição desse dispositivo enquanto um dos aparelhos que compõem a rede de assistência e cuidado a pessoas que fazem uso problemático ou abusivo de álcool e outras drogas, até o ano passado, não estava definido por nenhuma dessas pastas de forma exclusiva, e nem mesmo de forma intersetorial e interinstitucional, colocando-o numa zona de indeterminação em termos de gestão de políticas públicas e num certo limbo jurídico, características que possibilitam que as CT’s tenham sido utilizadas para práticas criminosas (sequestro, tortura e trabalho análogo à escravidão)[1], driblado fiscalizações por parte do controle social e escapado das responsabilizações por parte dos órgãos competentes.
Na última década vivenciamos, pesarosos, o desmantelamento acelerado das políticas públicas de saúde, educacionais e assistenciais e o incremento das de segurança pública e penais, que trouxe como um dos efeitos mais danosos o aumento do encarceramento em massa, do encarceramento de mulheres e jovens, dos negros e das práticas de tortura, num processo nunca acabado de incremento de antigas tecnologias de governo que visam ao controle de certos segmentos populacionais, de suas condutas e de suas vidas, nos levando ao topo do pódio dos países que mais matam e/ou deixam morrer pela afirmação de uma biopolítica letal ou “necropolítica”, nos termos de Achille Mbembe.
Essas comunidades, supostamente “terapêuticas”, só legitimam o desmonte pelo qual passa o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), assim como os retrocessos normativos e legais que têm atravessado a política de saúde mental e a política de enfrentamento às drogas (Lei n º 13.840/2019), em total desrespeito à reforma psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001).
Para aumentar o pesar daqueles que trabalham no campo das garantias de direitos – o que inclui o direito a saúde – e com as pessoas em sofrimento mental, em especial aqueles que fazem uso problemático de álcool e drogas, o ano de 2023 se inicia com os novos representantes do povo no poder decretando (Decreto nº 11.392)[2] a criação do “Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas”. Lotado no agora denominado “Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome”, o novo órgão teria, dentre suas principais atribuições, segundo o artigo 14 do decreto, que assessorar, assistir e apoiar os ministros do referido Ministério e da Justiça e Segurança Pública nas ações do governo e do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas relacionadas à atenção e à reinserção social de usuários e dependentes de drogas segundo os termos “antiquados” e “equivocados” do próprio documento. E, apesar de lembrar que esse apoio às ações de cuidado e de tratamento às pessoas em sofrimento mental e que fazem uso problemático de álcool e outras drogas deve ser dado em consonância com as políticas do SUS, nem ao menos menciona diretamente o Ministério da Saúde. Este, por sua vez, em abril do corrente ano, ainda afirma em seu sítio eletrônico que: “O Ministério da Cidadania ficará responsável pelo tratamento de dependentes químicos – focado na estratégia da abstinência dos usuários”.
Nesse sentido, apesar de esse caminho adotado frustrar as expectativas de que finalmente o tema poderia ser tratado a partir de um planejamento intersetorial que levasse em conta a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas no âmbito do Ministério da Saúde, os usuários, os movimentos sociais, alguns parlamentares e trabalhadores (do campo da saúde e das garantias de direitos humanos) confirmam a ideia de Michel Foucault de que “onde há poder há resistência” e, através de suas manifestações públicas, têm afirmado que não é possível dialogar com qualquer forma de cuidado que não seja baseada nas políticas de saúde pública e regidas pelos princípios tão bem delimitados pelo SUS (Lei nº 8.080/1990): universalidade, equidade e integralidade. Princípios estes que também regem as políticas de saúde mental que partem de uma perspectiva antimanicomial, não asilar, redutoras de danos, garantidora de direitos fundamentais, do cuidado em liberdade e da convivência comunitária- tal como proclamado pela Lei nº 10.216/2001.
Ouçamos o coro uníssono pelo fim das comunidades terapêuticas e sigamos confiantes de que a triste repetição das velhas práticas de governabilidade dos “ingovernáveis”, nestes novos tempos politicamente ambidestros, não haverão de minar os movimentos de resistência a elas que visam alçar voos de liberdade como os fazem os pássaros. Terminemos nossa conversa lembrando do “Poeminho do contra”, de Mario Quintana: “todos esses que estão aí atravancando nosso caminho, eles passarão… Eu [Nós] passarinho [s]”.[3]
[1] Conferir: Relatorio-da-inspecao-nacional-em-comunidades-terapeuticas_web.pdf (cfp.org.br). Recuperado em 08 de abril de 2023.
[2] Disponível em: D11392 (planalto.gov.br). Recuperado em 08 de abril de 2023.
[3]Acréscimos meus. Caderno H, Mario Quintana: Poesia Completa, Editora Nova Aguilar, p. 257.