Compromisso com a transparência e prestação de contas
Sem o trabalho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nós não teríamos dados policiais comparáveis no nível nacional, não conseguiríamos discutir temas tabu para o establishment político e estaríamos quase duas décadas atrasados no debate sobre a busca de soluções para a segurança pública
O impacto do Anuário 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) foi imenso e provocou, nas últimas semanas, grandes discussões sobre a qualidade dos dados policiais no Brasil e sobre o papel do FBSP e da sociedade civil na segurança pública. Em entrevista ao programa Estúdio I, da Globonews, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, repetiu de forma bastante agressiva críticas que ele faz ao menos desde 2012 ao FBSP. Costa questionou a legitimidade de uma organização da sociedade civil em compilar dados e disse que não é possível tecer comparações nacionais, pois os dados das UFs seriam incompatíveis. A imprensa reagiu e, em várias reportagens, mostrou que ele não tem razão, até porque o Fórum Brasileiro de Segurança Pública não coleta os dados dessa forma e adota inúmeros processos de revisão e validação dos dados.
De fato, se algum jornalista, pesquisador ou estudante for orientado ou treinado a simplesmente buscar dados de homicídios diretamente nos sítios das polícias estaduais/SSP, o risco de se comparar coisas incomparáveis existe e é provável que aconteça. Cada UF classifica e publica – quando publica – seus dados de um jeito. Por exemplo, 6 UFs somam os dados de mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) aos de homicídios dolosos, enquanto São Paulo, por exemplo, não faz isso. Não à toa, o FBSP criou a categoria agregadora MVI (Mortes Violentas Intencionais), bem como criou regras de equivalência e compatibilização. Hoje os dados das polícias tabulados pelo FBSP possuem o mesmo patamar de qualidade e cobertura do que os dados da Saúde, inclusive já superando esses últimos em volume de casos nos últimos anos.
Há um dilema federativo que dificulta o papel de coordenação de informações pelo Poder Público Federal. Nos casos da Saúde, da Educação e/ou da Assistência Social, que também possuem grandes sistemas de políticas públicas, o governo federal tem atribuição legal para coordenar e definir parâmetros. Na Segurança Pública, não – o governo federal depende de pactuações em torno dos repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública e condições políticas. Alguém imagina, para ficar só no exemplo mais atual, o Ministério da Justiça e Segurança Pública dando destaque à liderança da Bahia no número de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, sendo que o ex-governador do Estado é, no momento, o chefe da Casa Civil?
Ou seja, sem o trabalho do FBSP, nós não teríamos dados policiais comparáveis no nível nacional, não conseguiríamos discutir temas tabu para o establishment político e estaríamos quase duas décadas atrasados no debate sobre a busca de soluções para a segurança pública. Governos, corporações policiais, outras entidades da sociedade civil, imprensa e Universidade já acumulam grande experiência na área, mas a singularidade do FBSP está, exatamente, por reunir, no caso do Anuário, mais de 120 diferentes fontes de informação em um amplo e periódico retrato da área como um todo. Sem nossos dados e nossa comunicação ativa de alguns problemas, o debate sobre mortes violentas, padrões de uso da força, vitimização policial, governança e estrutura das polícias, violência sexual, contra mulheres e/ou contra crianças e adolescentes ficaria dependente de projetos e publicações pontuais. Perseverar na compilação e na análise de dados não é fácil, mas é necessário.
São muitos os exemplos de como a ação institucional do FBSP tem contribuído para a existência de dados qualificados, rigorosos, comparáveis entre si e, sobretudo, para a formulação e implementação de políticas públicas de prevenção e repressão qualificada aos vários tipos de violências. E, ao contrário do que alguns grupos disseram após a divulgação do Anuário, a indução da transparência e da cultura de prestação de contas não provoca pânico e/ou inunda a mídia com números alarmantes. Isso é discurso de quem quer proteger posições institucionais e/ou ideológicas. É discurso de quem, seja de qual espectro ideológico for, só quer resolver o problema da violência se o seu grupo ou opinião for a última a ser ouvida.