Roberto Uchôa
Policial federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) informou que, após o prazo de recadastramento de armas de fogo permitidas e de uso restrito adquiridas após maio de 2019 e registradas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), um total de 939.154 armas foram recadastradas. Essa quantidade representa cerca de 99% do total. Os dados foram divulgados em uma coletiva de imprensa realizada no Palácio da Justiça, sede do MJSP, em 4 de maio.
De acordo com o balanço final da Polícia Federal, responsável pelo Sistema Nacional de Armas (Sinarm), no qual essas armas foram recadastradas, inseriram-se no sistema 894.890 armas de uso permitido e 44.264 armas de uso restrito. Esses números diferem dos registrados no Sigma, no qual estavam cadastrados 882.801 armamentos de uso permitido e 50.432 armas de uso restrito, totalizando 933.233 armas recadastradas.
Chamou a atenção das autoridades o fato de terem sido recadastradas mais armas de calibres permitidos (894.890) do que as que estavam cadastradas (882.801). Essa diferença de aproximadamente 12.000 armas em posse da população, que não constam no Sigma, ressalta uma das principais razões apontadas para a deficiência no controle do mercado legal de armas de fogo no Brasil: a existência de dois sistemas independentes, com estruturas e operações distintas, conduzidos por instituições cujas atividades principais não incluem o controle do mercado de armas.
Além disso, no caso das armas de uso restrito, que exigiam que os proprietários comparecessem a unidades da Polícia Federal para apresentá-las, apenas pouco mais de 44 mil das mais de 50 mil armas registradas no Sigma foram recadastradas. Isso significa que cerca de 6 mil armas de uso restrito permanecem em situação ilegal. O desaparecimento dessas armas levanta preocupações entre as autoridades, uma vez que são as armas de maior interesse para organizações criminosas, incluindo fuzis, que antes eram inacessíveis à população.
A conexão entre os mercados legal e ilegal de armas de fogo sempre esteve presente e tem sido objeto de estudos e relatórios. No entanto, sob o governo Bolsonaro, essa conexão atingiu níveis sem precedentes. Há numerosas investigações que indicam que facções criminosas e milícias se aproveitaram das mudanças para adquirir, no mercado legal, armas e munições que anteriormente eram restritas às forças militares e de segurança. Portanto, é extremamente preocupante constatar que aproximadamente 12% das armas restritas adquiridas durante esse período não foram recadastradas.
Também foram identificadas algumas inconsistências, totalizando 460 unidades pendentes que requerem revisão por parte das autoridades. Além disso, existem 1.727 armas registradas no sistema online, mas que não foram apresentadas fisicamente e estão marcadas como não verificadas, o que sugere a possibilidade de um número ainda maior de armas restritas “desaparecidas”.
Embora seja compreensível que o governo considere o recadastramento um sucesso com base nos números apresentados, é crucial ir além da simples observação dos dados. Na realidade, o grande mérito do recadastramento foi revelar um grave problema de gestão do mercado de armas, que não será resolvido apenas com a unificação ou interligação dos sistemas. Uma quantidade significativa de armas de calibres restritos foi adquirida com autorização do governo e agora sua localização é desconhecida. Estamos falando de armas suficientes para equipar um pequeno exército.
No período de quatro anos em que o governo Bolsonaro flexibilizou os controles e aumentou a disponibilidade de armas e munições para aquisição, o número de armas em circulação no país dobrou. Houve a abertura de milhares de lojas de armas e clubes de tiro, e o número de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) aumentou significativamente, passando de cerca de 60 mil em 2017 para mais de 820 mil pessoas até o final de 2022. O sistema de controle, que há décadas é compartilhado entre o Exército e a Polícia Federal, mostrou-se inadequado e incapaz de exercer um controle eficaz sobre um mercado que se expandiu rapidamente.
Uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União em novembro de 2022, com o objetivo de identificar as dificuldades nesse controle, revelou diversos problemas e ressaltou a necessidade de adotar medidas para aprimorar a fiscalização, gestão e controle sobre o mercado de armas. Recomendações foram feitas visando ao fortalecimento dessas áreas. Cópias do relatório foram enviadas para a Presidência da República, o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público, as comissões do Senado Federal e da Câmara dos Deputados responsáveis pela segurança pública, o Colégio Nacional dos Secretários de Segurança Pública (Consesp), o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Ministério da Defesa e o Gabinete de Transição Governamental.
Portanto, os resultados do recadastramento apenas confirmam o que muitos já sabiam e que hoje poucos podem alegar desconhecer: o mercado legal de armas de fogo enfrenta graves problemas de gestão, controle e fiscalização. Se o novo governo realmente deseja mudar essa realidade, é necessário ir além de grupos de trabalho e novas regulamentações. É preciso ter coragem para implementar as mudanças necessárias e existem modelos de gestão em outros países, incluindo nossos vizinhos, que podem servir como referência.
Não podemos simplesmente voltar ao passado sem realizar mudanças significativas. É crucial compreender que os desafios enfrentados pelo país em 2023 são diferentes dos que tínhamos em 2003, quando foi promulgado o Estatuto do Desarmamento. Vinte anos depois, é hora de modernizar a gestão do mercado de armas e a solução passa necessariamente pela unificação do controle, fiscalização e gestão de bancos de dados sob uma única instituição de caráter civil. Chegou o momento de o país criar uma agência nacional de armas, que possa lidar de forma eficiente e responsável com esse tema tão sensível.