Múltiplas Vozes 20/09/2023

Como as experiências em Processos Administrativos Disciplinares afetam as percepções de policiais militares sobre as relações internas?

Não ser tratado com respeito durante um PAD pode reforçar ainda mais nos subordinados o sentimento de que existem duas polícias: uma para os superiores e outra para os subordinados

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Fernanda Novaes Cruz

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP)

André Rodrigues de Oliveira

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP)

Estudos sobre as instituições policiais têm alertado que a forma como os agentes são tratados internamente ajuda a definir a forma com que eles tratarão as comunidades a que prestam serviços. Uma dessas correntes teóricas, denominada de justiça procedimental, aponta que as percepções sobre uma autoridade são moldadas pelo julgamento de como as autoridades tomam decisões e como elas tratam as pessoas enquanto exercem essa autoridade. No interior das polícias, os estudos sob essa perspectiva sugerem que as experiências diárias de comportamento justo e respeitoso por parte dos supervisores podem contribuir para produzir nos subordinados a percepção de que este é um modo comum de comportamento e de que a maioria das pessoas pode ser confiável.

Testamos essa teoria a partir das experiências de policiais militares paulistas em Procedimentos Administrativos Disciplinares (PAD), o instrumento adotado pelas instituições públicas para apurar infrações funcionais e se necessário aplicar as penalidades aos agentes públicos. Entendemos o desenrolar desses processos como uma ocasião privilegiada para que os policiais (aqui na condição de acusados) experienciem e avaliem formas de exercício da autoridade.

Analisamos os resultados de um questionário aplicado para 298 policiais militares da cidade de São Paulo, em 2016. Para este estudo, utilizamos somente 171 questionários do total da amostra (57,38%), o percentual de policiais militares que afirmaram terem respondido um PAD na ocasião da pesquisa.

Em relação ao PAD, perguntamos se o policial avaliava ter tido um espaço de defesa, ter sido tratado com respeito e se o resultado havia sido favorável a ele. A maioria absoluta de policiais afirmou ter tido espaço de defesa ao longo do processo (90% dos casos analisados), enquanto que 69,1% dos policiais afirmaram que foram tratados com respeito e em 54,9% dos casos os resultados foram considerados favoráveis. Em seguida, por meio da utilização de modelagem de equações estruturais, identificamos que os três aspectos da experiência de vivenciar o PAD analisados estavam direta ou indiretamente associados às percepções sobre a experiência laboral com os superiores, com os pares e com a justiça organizacional.

A percepção de que houve espaço para a defesa apresentou associação positiva sobre a percepção da relação dos policiais com os seus pares. O tratamento respeitoso, por sua vez, apresentou efeitos positivos sobre a justiça organizacional e sobre a relação com os superiores. Em contrapartida, considerar o resultado justo apareceu negativamente associado com as percepções sobre a relação com os pares, isto é, quanto melhor é a percepção a respeito da justiça do resultado, pior é a percepção em relação aos pares.

Portanto, ser tratado com respeito durante esses processos pode ser uma ferramenta importante para melhorar a avaliação da justiça na instituição e da relação com os superiores. Em contrapartida, não ser tratado com respeito durante um PAD pode reforçar ainda mais nos subordinados o sentimento de “nós” e “eles”, ou seja, o sentimento já captado por pesquisas anteriores, de que existem duas polícias: uma para os superiores e outra para os subordinados.

Outro resultado relevante é a relação negativa entre o resultado favorável e a relação com os pares, ou seja, quanto melhor a percepção de ter havido desfecho favorável do processo, pior é a percepção em relação aos pares. Uma hipótese para esse resultado é que a percepção de um resultado desfavorável ao término do processo pode favorecer o fortalecimento das relações entre pares moldadas pelo sentimento de proteção mútua baseado no silêncio, a chamada “cortina azul” ou código de silêncio.

É verdadeiro que parte considerável dos estudos realizados sobre essa perspectiva advém do Norte Global, em países como Inglaterra e Estados Unidos. Entretanto, nosso estudo soma-se aos trabalhos que vêm demonstrando a relevância da aplicação dos procedimentos justos para contextos do Sul Global. É evidente que uma série de questões é necessária para o estabelecimento de um policiamento democrático, seja no interior da instituição ou no contato com a sociedade, mas acreditamos que a adoção de procedimentos internos justos e respeitosos pode ser um esforço inicial nesta empreitada.

Os resultados na íntegra do estudo do elaborado pelos pesquisadores Fernanda Novaes Cruz, André Rodrigues de Oliveira, Frederico Castelo Branco e Viviane Cubas, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), foram publicados em 2023 no periódico Policing: A Journal of Policy and Practice[i].

[i] Disponível em: https://academic.oup.com/policing/article-abstract/doi/10.1093/police/paad046/7234741?redirectedFrom=fulltext

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