Mulheres e Segurança Pública 06/03/2024

Ciladas do punitivismo: premissas equivocadas e reflexos do PL das ‘saidinhas’ para as mulheres negras

As saídas temporárias foram concebidas como um direito na Lei de Execuções Penais (LEP). Não se trata de privilégio, posto que são condicionadas ao cumprimento de requisitos legais

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Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Para quem pouco ou nada se permitiu pensar os lugares das mulheres negras na sociedade brasileira, pode ser desafiador refletir sobre o que a vivência prisional coloca. Afinal, parece bem distante conceber modos de vida que tanto se afastam de uma existência digna e merecedora de igual respeito e fruição de direitos.

Pensando em um 8M que contemple lutas de todas as mulheres, em que as opressões de raça e gênero tenham eco, trago aqui pontos de reflexão sobre as mulheres negras. É com Lélia Gonzalez que aprendemos que fazer crer que somos um país racialmente branco alimenta o racismo por denegação. É grave invisibilizar que 67% das mulheres presas são negras.

Por isso, na recente discussão da potencial reforma processual, em curso no Legislativo Federal, materializada pelo Projeto de Lei 2253/2022, voltado, entre outros temas, a extinguir a saída temporária de pessoas em privação de liberdade, chama atenção que a mensagem que mais tenha recebido destaque foi a que se deslocou entre os apoiadores ou detratores dessa proposta, buscando argumentos vários que justificassem seus pontos de vista.

No entanto, ficou totalmente secundarizado o debate que mais uma vez nos coloca a profundidade do racismo estrutural – tudo se passa como se, ao falar da população carcerária brasileira estivéssemos em um cenário abstrato, que desconsidera por completo o recorte racial das pessoas privadas de liberdade, e mesmo que de mulheres não se trata, quando lidamos com o sistema prisional.

Em outras palavras, consentir com a revogação da saída temporária é aceitar uma estratégia institucional que vai impactar direta e negativamente a população negra encarcerada, bem como os seus vínculos extramuros. É interditar um dos diálogos com as possibilidades de ressocialização.

A presença das mulheres negras no cárcere tem assistido a uma tendência ascendente. E, de forma indireta, ainda que não estejam no cárcere – sejam mães, filhas, avós, tias, companheiras –, estão sendo atravessadas pelo espaço prisional, pois assumem a liderança familiar para a manutenção dentro e fora da prisão. É a partir daí que podem ser desautorizadas, humilhadas e terem toleradas suas mortes cotidianas, seja pelo perecimento do corpo físico, seja pelas reiteradas violências simbólicas.

Ora, as saídas temporárias foram concebidas como um direito na Lei de Execuções Penais (LEP) – frise-se, não se trata de privilégio, posto que são condicionadas ao cumprimento de requisitos legais – voltado ao processo de retomada dos laços familiares e comunitários que permitiriam, justamente, a transição paulatina para o meio aberto. Cessando essa possibilidade, solidificam-se lugares sociais demarcados pela exclusão e que dificilmente conseguirão ser transpostos. E serão as mulheres negras as mais diretamente atingidas por essa medida.

No cenário dos Direitos Humanos, as Regras de Bangkok (2010) trazem previsões, no âmbito das Nações Unidas, em matéria de prevenção ao crime e justiça criminal para mulheres presas. É evidente a preocupação em viabilizar a reintegração social, levando em conta, inclusive, as necessidades específicas das mulheres presas.

É oportuno lembrar ainda que estamos também na expectativa de um plano de intervenção, contemplando a questão do encarceramento em massa, que foi objeto de debate no STF, ao reconhecer o estado de coisas inconstitucional quanto ao sistema prisional. Temos aí, a olhos vistos, uma patente incoerência entre os poderes do Estado – de um lado o Judiciário, com um posicionamento que incentiva medidas de desencarceramento e, de outro, o Legislativo que, embora reconheça a superlotação e os impactos disso na ressocialização, desvirtua a função do instituto da saída temporária, colocando-a como empecilho ao combate à criminalidade.

A ideia de um Estado firme, implacável, que “faça justiça” sobretudo endurecendo a política criminal, vive em estado de latência. E ganha novo fôlego ao sabor de acontecimentos que ganham projeção – ora se concentra no cidadão, ora nos legisladores. A reatividade tem sido uma constante no campo da segurança pública, esvaziando-lhe, por vezes, o sentido de direito social fundamental.

Conspirar a favor da subordinação de direitos, em nome de uma suposta melhoria na eficiência estatal, é mais palatável quando a abstração toma conta. Nessa toada, sequer conseguimos alcançar a discussão da igualdade formal.

bell hooks foi direta e certeira nos convocando à ação, quando formulou que o feminismo é para todo mundo. Mas é ela também que assume que, para vivermos um mundo de possibilidades, não basta a revolução feminista – precisamos igualmente acabar com o racismo. Não aceitar a presença estrutural e institucional do racismo alimenta a sua continuidade. Insistir em apartar as intersecções de gênero e raça no sistema prisional recrudesce e naturaliza a vulnerabilização dos direitos das mulheres negras.

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