Cidadania no nome ou no centro da política? Permanências e resistências no retorno à segurança cidadã através do Pronasci II
Para avançar na segurança enquanto política pública é necessário que a segurança cidadã volte a estar no centro das discussões nacionais, e não apenas no nome da política. Tarefas para o próximo ministro da Justiça!
Lígia Mori Madeira
Doutora em Sociologia, Professora do Departamento de Ciência Política e Coordenadora do NEDIPP/UFRGS
Kálita Hilario Trindade de Medeiros
Doutoranda em políticas públicas PPGPP/UFRGS e pesquisadora do NEDIPP/UFRGS
Uma das políticas públicas de segurança mais (re)conhecidas ganhou destaque no novo governo Lula, com o lançamento do Pronasci II pelo Decreto nº 11.436, em 15 de março. A partir do claro uso da “marca” Pronasci, pergunta-se: até que ponto há uma retomada e em que medida será capaz de trazer de volta, pelo menos em termos conceituais, a perspectiva da segurança cidadã, abandonada nos planos e políticas que o sucederam?
Para entender os desafios da conjuntura atual é importante fazer uma retrospectiva da trajetória da segurança pública brasileira e de suas políticas. Para isso, reconstituímos aqui uma análise que fizemos sobre os principais planos nacionais de segurança pública elaborados no Brasil pós-Constituinte, desde FHC até o Pacote Anticrime[1]. Naquela análise, nosso interesse foi identificar se os planos nacionais de segurança pública correspondiam ao que a literatura sobre políticas públicas considerava como tal e se presentes os elementos fundamentais que devem conter em um plano. As categorias analíticas incluíram a visão de segurança pública de cada plano, suas principais metas e meios para operacionalização, se havia ou não partido de um diagnóstico, se o plano previa monitoramento e avaliação.
O trabalho permitiu ilustrar o quanto a visão de segurança pública variava conforme o governo e suas posições, incidindo também nas metas e ações. Uma boa notícia foi que a maioria dos planos incluía os municípios, além dos estados, na sua execução, e contava com algum tipo de diagnóstico. O monitoramento e a avaliação, por outro lado, só iriam surgir a partir do Pronasci.
Analisar os planos implica compreender o que essa estrutura normativa expõe sobre a forma e os propósitos da política pública proposta. Observar os planos de segurança pública demonstrar o contexto em que essas políticas são formuladas e como o problema da violência e da criminalidade é enfrentado.
O primeiro plano de segurança, editado durante o governo FHC, surgiu às pressas, logo após uma sequência de acontecimentos que vão interferir diretamente na segurança pública brasileira, suas políticas repressivas e desfechos, como o sequestro do ônibus 174. O PNSP implicaria um reconhecimento da importância da prevenção da violência, no mútuo fortalecimento dos programas sociais implementados pelos três entes federativos. Foi durante o governo FHC que houve a criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) em 1997. Nesse período as discussões sobre diagnóstico, monitoramento e avaliação ainda eram precárias e não foram incluídas no plano. O predomínio do paradigma da segurança pública é condizente com a época, reproduzindo a visão constitucional.
Depois de uma tentativa frustrada de formulação de um plano no governo Lula I, o segundo mandato foi marcado pela formulação do Pronasci, em 2007. A visão impressa era de uma segurança preventiva desenvolvendo ações integradas de segurança pública e de políticas sociais, somadas à repressão qualificada. As principais metas eram promover o acesso à justiça para a população dos territórios de descoesão social, intensificar e ampliar as medidas de enfrentamento ao crime organizado e à corrupção policial, promovendo os direitos humanos.
Para operacionalizá-lo, foram desenvolvidas ações de resgate a jovens em situação de vulnerabilidade, com foco territorial em espaços chamados de Territórios da Paz, além de programas voltados às mulheres e aos operadores da segurança pública, como o Bolsa Formação. Apesar dos problemas, como a dificuldade de execução das propostas, a priorização de determinadas ações e, principalmente, a difícil consecução na prática da ideia de segurança cidadã, do ponto de vista da caracterização de um plano, este foi, sem dúvida, o melhor instrumento de política até então formulado.
Apesar desse reconhecimento, faltou continuidade e, durante o governo Dilma, o Pronasci começou a perder força e a sofrer cortes orçamentários, sendo substituído pelo Pacto Nacional de Prevenção e Redução de Homicídios (PNRH), com ações focalizadas nos estados com altas taxas de homicídios. Mesmo contemplando políticas preventivas e repressivas, o programa focalizado demarcou uma reconsideração do papel da União na segurança pública, responsabilizando os entes estaduais pela pauta.
O governo Temer teve um papel importante, com o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social. Contendo quinze objetivos, dentre eles reduzir os homicídios e os demais crimes violentos letais; reduzir todas as formas de violência contra a mulher, em especial as violências doméstica e sexual, prevenir e reprimir situações de exploração sexual, independentemente de gênero; a visibilidade e saída do papel do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) foi dos maiores ganhos, especialmente porque sua construção contou com a participação de diferentes coalizões. Não obstante os avanços do plano preverem M&A e terem partido de amplos diagnósticos, a conjuntura da época levou à promoção de uma política centrada no combate ao crime organizado, sem que seus delineamentos no Brasil estivessem bem consolidados. Uma de suas principais características é o alinhamento com as diretrizes e objetivos da Estratégia Nacional Desenvolvimento Econômico e Social para o Brasil (ENDES), no que identificamos um retrocesso em termos de paradigma para a área.
No governo Bolsonaro, o Pacote Anticrime conquistou alterações legislativas de endurecimento penal, visando uma segurança baseada na repressão da corrupção, do crime organizado e de crimes praticados com grave violência à pessoa. O instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) de natureza penal, bilateral, celebrado entre o MP e o autor do fato imputado como crime, dando grande poder de seletividade ao parquet[2]; e o juízo de garantias, que, considerado um jabuti, acabou aprovado e reconhecida sua constitucionalidade pelo STF, são mudanças institucionais severas, objeto de escrutínio e avaliação. Bolsonaro reeditou depois o plano elaborado no governo Temer, reafirmando os objetivos e metas contidos no plano, estendendo os ciclos de implementação de 2021-2030.
A vitória de Lula reacendeu as expectativas de mudança e engajamento do Executivo Federal na pauta da segurança. O Pronasci II trouxe cinco eixos prioritários de atuação: fomento às políticas de enfrentamento e prevenção de violência contra as mulheres; fomento às políticas de segurança pública, com cidadania e foco em territórios vulneráveis e com altos indicadores de violência; fomento às políticas de cidadania, com foco no trabalho e no ensino formal e profissionalizante para presos e egressos; apoio às vítimas da criminalidade; e combate ao racismo estrutural e aos crimes decorrentes (Decreto nº 11.436).
Embora traga o nome de Pronasci e reimplemente programas como o Bolsa formação, segue atrelado às diretrizes impostas pelo programa de Temer, dando destaque para as metas 1, 2, 4, 11 e 12. Há certa ironia aí, já que pela primeira vez que temos uma política de Estado, em uma área que sempre penou com as iniciativas conjunturais, parece ser justamente essa amarra a distanciar aquilo que o primeiro programa tinha de mais interessante: justamente a segurança cidadã, nem que restrita às ideias e concepções.
Por enquanto, o que temos visto é uma priorização das ações voltadas ao crime organizado e à retomada da formação e qualificação das forças de segurança. Iniciativas em relação à violência contra a mulher, junto de outras propostas para grupos vulneráveis, são fundamentais, mas ainda se sabe pouco a respeito dos programas que precisam advir do decreto.
Sem correr o risco da ingenuidade, para avançar na segurança enquanto política pública é necessário que a segurança cidadã volte a estar no centro das discussões nacionais, e não apenas no nome da política. Tarefas para o próximo ministro da Justiça!
[1] Este artigo apresenta uma síntese do capítulo MADEIRA, L. M.; K. H. TRINDADE “Da segurança nacional à segurança cidadã e o retorno ao endurecimento penal: Uma análise dos planos nacionais de segurança pública no Brasil recente” in: LIMA, L. L.; PAPI, L. P. Planejamento e políticas públicas: intencionalidades, processos e resultados. Porto Alegre: UFRGS/Cegov, 2020. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/212555.
[2] Em andamento projeto de pesquisa financiado pelo CNPq intitulado A Aplicação do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) pelo Ministério Público Federal: discricionaridade e seletividade em suas escolhas de política criminal, coordenado por Lígia Mori Madeira e Melissa de Mattos Pimenta, com pesquisadores do NEDIPP/UFRGS e GPVC/UFRGS.